Um dos exemplos mais dramáticos e melhor documentados de como os interesses das corporações são opostos aos das populações e de como estas últimas, por mais pobres que sejam, podem organizar-se e fazer valer os seus direitos, ocorreu na Bolívia, na viragem do novo milénio.
Decorria o ano de 1999 quando o governo boliviano - fortemente pressionado
pelo BM e pelo FMI - decidiu privatizar o sistema de abastecimento público
de água. A cidade de Cochabamba (a terceira maior do país) foi a escolhida
para iniciar o processo. Quem ganhou o concurso público foi a empresa Aguas del Tunari, que é apenas um ramo de um consórcio (sedeado em Londres) chamado International Water Limited (IWL) que, por sua vez, está sob controlo da corporação Bechtel (sedeada em S. Francisco, EUA).
A Bechtel é a cabeça de um conglomerado que, só no ano de 1998, 12,6 mil
milhões de dólares. No ano seguinte aumentou os seus lucros para 14 biliões
de dólares (que é quase o dobro do PIB da Bolívia). Estes lucros obteve-os
explorando o abastecimento de água a 6 milhões de pessoas em vários países
e, na altura dos acontecimentos que irei de seguida relatar, preparava-se para conquistar mais um milhão de clientes.
Fontes não oficiais junto do governo boliviano afirmaram que a água de
Cochabamba tinha sido negociada por 200 milhões de dólares, ficando a Bechtel na posse até da água da chuva - que população passou a ser proibida de armazenar; até as comunidades rurais daquele município não podiam utilizar gratuitamente a água dos seus poços nem os seculares sistemas de rega. Não é este um género de poder que atribuímos aos deuses?!
A corporação tinha avidez em recuperar o seu investimento o mais cedo
possível, aumentado logo as taxas até 35%. Os cochabambinos foram
drasticamente afectados por estas medidas. A maioria (dois terços) da
população vive abaixo do “limiar de pobreza”. O salário mínimo na Bolívia
não chegava aos 60 dólares. Muitas famílias que tinham rendimentos médios
na ordem dos 100 dólares mensais passaram a ser obrigados a pagar até 20
dólares pelo abastecimento de água. A onda de indignação popular cresceu ,
tomando a forma de greves, desobediência civil, manifestações - pacíficas
- nas ruas e, ante a recusa do governo em dialogar e rever a sua posição
(saindo em defesa dos mais desfavorecidos, como lhe competia), sucederam-se bloqueios de várias vias rodoviárias. O governo lidou com esta situação
declarando o estado de emergência sob lei marcial, e ordenou a carga dos
soldados sobre os manifestantes. As forças armadas não se fizeram rogadas, e, após dois dias a distribuir bastonadas e a lançarem gás lacrimogéneo sobrea multidão (tendo ferido 177 pessoas, duas das quais ficaram permanentemente cegas), decidiram disparar munição real. Um jovem de 17 anos, de seu nome
Victor Hugo Daza, recebeu um tiro na cara e morreu. Houve muitos outros
feridos; alguns ficaram paralíticos , outros acabaram por morrer nas semanas seguintes.
A Bechtel e o governo fizeram declarações públicas tão estapafúrdias quanto ofensivas, transferindo as responsabilidades dos acontecimentos para os narcotraficantes que, segundo eles, "financiaram as actividades agitadoras dos subversivos"(sic). É certo que o BM e o FMI mostraram-se igualmente inflexíveis nas suas posições de exploração dos pobres, mas convém perscrutarmos que tipo de governantes apara o jogo destes poderosíssimos piratas que usam fato e gravata.
Hugo Banzer era o presidente da Bolívia na altura dos referidos tumultos, mas já tinha ocupado a cadeira do poder entre 1971 e 1978 e fê-lo de forma
autoritária, praticamente ditatorial. Por isso não lhe deve ter custado muito
negar a população queixosa a maioria dos seus direitos civis, incluindo o de
se juntarem mais de quatro pessoas em espaços públicos e o de terem acesso ainformação livre de censura. Os líderes da revolta viram-se assim vítimas de arbitrariedades violentas, tais como: perseguições, detenções ,
torturas, ameaças às famílias e deportações para cadeias no meio da selva.
O governo de emergência instituído por este ditadorzeco incluía, além dele
próprio, o governador do estado (que antes da crise era chefe da polícia
local), Walter Cespedes, e o presidente do município, Manfred Reyes Villa.
Suponho que esta reunião dos "irmãos metralha" também serviu para matar
saudades dos tempos em que eram universitários, visto que todos eles foram diplomados pela School of the Americas em Forte Benning (Georgia), reputada por providenciar a militares estrangeiros um treino muito especializado nas
técnicas de terror despótico, tortura e assassinato. (Por lá passaram, entre
muitos outros criminosos, militares indonésios de alta patente, que aplicaram
esses doutos conhecimentos nos massacres aos timorenses durante as
administrações de Bush pai e de Clinton... "God bless America!"...)
Os populares acabaram por vencer. Sem terem disparado um único tiro de
retaliação, encurralaram e expulsaram os maus governantes, dando uma
lição ao mundo - se é que estamos receptivos a aprender as lições
correctas...
Esta vitória esperançada provavelmente não teria sido possível sem a ajuda
concertada que afluiu de vários sectores da sociedade de vários países (mais
uma vez, a liberdade e rapidez de comunicação da Internet foi essencial) e
que se reuniu na coligação chamada Coordenadora de Defesa da Água e da Vida
(CDAV).
O abastecimento de água em Cochabamba é actualmente assegurado por uma empresa
pública de gestão popular. Herdaram-na cheia de problemas, mas a nova
administração está a dar conta do recado. A luta apensa começou, pois,
antes de vender a água à Bechtel, o governo deposto tinha privatizado quase
todos os sectores essenciais à estabilidade económica do país (ex.:
petróleo, electricidade, telefones, caminhos de ferro, etc...) e o povo
quere-los de volta, tentando renegocia-los pacificamente.
Nem o BM, nem o FMI, nem a Bechtel se deram por vencidos -e têm a seu favor
os meios de poder coercivo - menos a razão. As duas primeiras instituições
cortaram os subsídios destinados à melhoria das infra-estruturas básicas, e
a corporação vilã exige uma indemnização multimilionária por perda de
contrato. (Claro que não menciona que o seu administrador destacado para a
Bolívia, antes de fugir, deu um desfalque nas contas bancárias da empresa,
roubou todos os computadores que já existiam antes da Bechtel tomar posse;
destruiu a base de dados essencial á sua gestão e deixou contas para pagar
- suportadas pelos actuais administradores pobres - no valor de 150 mil
dólares.) A Bechtel apoia-se no Tratado Norte Americano de Livre Comércio
(NAFTA) que, no capítulo 11, refere as normas sobre os investimentos
bilaterais,++++
Mas não teria meios legais para vencer este processo se uma empresa do seu
conglomerado/consorcio não estivesse sediada na Holanda, país que, de forma
muito conveniente, mantém com a Bolívia um tratado de investimentos
bilaterais. O diferendo será resolvida no Tribunal Internacional para a
Resolução de Disputas de Investimentos/investidores (?) que é gerido pelo
BM...
Os bolivianos simplesmente não têm recursos necessários para pagarem a
ultrajante indemnização pretendida pela Bechtel, nem o povo pode ser
responsabilizado pelo contrato desonesto celebrado entre os políticos e os
executivos que dava "garantias" à Bechtel de ter um retorno anual de 16%
sobre os seus investimentos iniciais - todos sabiam que isso só era
possível pedindo aos pobres para pagarem mais do que poderiam.
Bechtel (25 milhões de indemnização
Os que tombaram nesta luta merecem um epitáfio melhor do que o que está inscrito na lápide de John Keats (no cemitério protestante de Roma): «aqui jaz alguém cujo nome foi escrito na água»…
«O custa da vida sobe e sobe e o valor da vida desce e desce» - anónimo Colombiano (segundo Eduardo Galeano , 1995)
++++A Canadian Methanex Corp. invoca o mesmo documento para suster um processo judicial contra o Estado da Califórnia por este ter tomado medidas para proteger a sua população do químico cancerígeno MTBE com que a referida empresa canadense tem contaminado as águas californianas.
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