sexta-feira, junho 13, 2014

A minha avó materna – testemunha de Jeová fanática e bastião da moral e dos bons costumes -, apesar de sempre solicita em ajudar todos os que lhe eram próximos, muito contribuiu para a disseminação da boataria homofóbica que me vitimou. Ela nunca se coibiu de pensar o pior dos que tinham uma fé (ou ausência desta) diferente da sua. Sem fazer o menor esforço por tentar compreender e respeitar a alteridade, projetava nos outros a sujeira dos seus preconceitos e das suas fantasias reprimidas. Acreditava que o fim do mundo bíblico estava próximo e dominava-a uma exasperada frustração por não conseguir converter à sua religião os familiares que a rodeavam (com a excepção da sua irmã). Atribuía a Lúcifer e seu séquito de demónios o boicote dos seus messiânicos propósitos. Na minha conturbada adolescência, ela, generosamente, muito contribuiu para suprir as minhas necessidades básicas de abrigo (físico) e alimento – e como cozinhava bem a minha avó! Eu deveria ter uns (ingénuos e mirrados) 15 anos quando lhe fiz uma visita que teve conseqüências terríveis para a minha reputação. Subi ao terceiro andar (sem elevador) onde ela morava, apenas para constatar que não se encontrava lá. Decidi sentar-me nos degraus e esperar. O vizinho da frente (as entradas desses apartamentos distavam uns 3 metros) percebeu o que se passava, e me convidou a esperar na casa dele. Eu declinei, mas a minha timidez e bons modos não resistiram à sua simpática insistência. Ele me disse para eu me sentar no sofá da sala e ligou a televisão para mim. Pediu desculpas por não poder me fazer companhia, pois tinha muito trabalho para fazer em casa, e logo foi para uma divisão onde pude relancear um estirador. Acho que era engenheiro ou arquiteto. Fiquei sozinho naquela sala, até que o meu discreto anfitrião lá assomou apenas para me dizer que escutara a minha avó chegar. Agradeci-lhe a hospitalidade e saí de imediato para dar um abraço na minha avó, que mal tinha aberto a porta da sua casa. Mas ela me olhou de forma muito estranha e retribuiu com frieza os meus carinhos entusiastas. Ela nunca tinha feito isso antes. Calculei que tivera um dia especialmente mau. Eu estava longe de imaginar que, segundo a minha avó, aquele homem era homossexual e eu tinha saído da casa dele com um sorriso muito suspeito (sic), o que, na cabecinha doente dela, confirmava que eu me entregara ao mais abominável dos vícios – ela sempre suspeitara isso de mim!... Expedita e viperina, sem sequer falar comigo primeiro, espalhou por toda a família e conhecidos que eu tinha dado o cú para o seu vizinho! A partir desse dia, sempre que eu a visitava e precisava de usar a casa-de-banho, ela, com enojada impaciência, me esperava ‘a porta munida de produtos de limpeza. Mal eu saia, entrava de imediato para desinfetar tudo em que eu, ou algo que tivesse saído de mim, pudesse ter tocado. Curiosamente, esse policiamento (feito exclusivamente de maliciosas conjecturas) da minha hipotética sexualidade em transgressão, foi completamente incapaz de me proteger do verdadeiro predador sexual que, como costuma acontecer, tinha livre acesso ao meu ambiente familiar e círculo de amigos. Nesse tempo, durante meses, quase diariamente um quarentão chamado Francisco Freilão (residente em Almeirim) me procurou, com convites aparentemente inocentes para bebermos umas bojecas juntos e conversarmos. Eu não entendia o motivo da sua atração por mim (um adolescente imberbe), mas precisava de amigos mais velhos, com os quais pudesse ter conversas inteligentes (algo que, de modo algum, conseguia com os meus colegas de escola) ; referências masculinas de um papel que o meu progenitor não esteve à altura. Apesar da sua pose e entoação de voz ser a de alguém que possui a vaidosa confiança de só dizer coisas interessantes, profundas e reveladoras, nem uma única vez ouvi dele algo que tivesse essa correspondência. Enquanto eu, debalde, esperava por tais conhecimentos, ele, com planejado cuidado, ia avaliando possíveis brechas na minha resistência aos seus avanços homossexuais, tentando moldar a minha mente para o aceitar como parceiro de cama. Eu asfixiava essas suspeitas, precisando continuar a confiar em alguém que presumia me oferecer uma amizade sincera e edificante, semelhante ao que eu conhecia apenas em livros. Foi tateando a minha jugular exposta. Numa única ocasião admitiu ter dormido nos braços de outro homem. Com saudosismo, me contou um dramático episódio do seu tempo de soldado. Na véspera de ser enviado no bojo de um navio para a guerra no Ultramar, ele teve que consolar outro magala que lhe era muito próximo. Na versão do Freilão, todos à sua volta estavam aterrorizados menos ele que já era um grande homem. Por isso mesmo, satisfez o pedido do amigo, segurando-o noite adentro num abraço encharcado de lágrimas, e trocando carinhos. Neste ponto do seu relato, a expressão facial que ele leu em mim, levou-o a arrepiar caminho, enfatizando que aquilo nada teve que ver com sexo. E continuou enaltecendo a minha “rara sensibilidade”, me “educando” como um oleiro que manuseia um pedaço de barro, tendo uma clara idéia do resultado final pela experiência dos gestos repetitivos que já produziram peças satisfatórias. Disse-me que considerava estúpido (o que eu menos queria ser) os homens terem um receio envergonhado de serem carinhosos entre si, até porque <>(sic). Como tática recorrente, aqueles que os mídia e toda a indústria de entretenimento vendiam a imagem de supra machões (ex.: Sylvester Stallone), ele dizia respeitá-los pela coragem de terem assumido publicamente (?!) relações homossexuais. (Numa pequena povoação do interior e ainda não estando disponível a Internet, era difícil verificar a veracidade dessas informações, que, de resto, não tinham qualquer interesse para mim.) A seguir, vomitava a peçonha misógina (ex.: que todas as mulheres cheiram muito mal da genitália, não importa o quanto se lavem; que são umas chatas castradoras, demasiado instáveis emocionalmente, fúteis, falsas e interesseiras, etc...), não perdendo a pose de homem experiente querendo se passar por mentor ou mesmo tutor de adolescentes ingénuos e confusos, numa versão fuleira e distorcida de Safo com calças. A constituição de uma família convencional (que chegou a me apresentar, tendo até me levado ao salão da sua esposa para que esta me cortasse as melenas; custa acreditar que ela desconhecesse a sexualidade clandestina do marido) dava-lhe a fachada que precisava para se proteger das crescentes suspeitas. O seu mapa erótico deveria se assemelhar mais à Pequim subterrânea que Mao mandou construir temeroso de uma guerra nuclear, do que à bela Capadócia. Provavelmente pertence a essa massa anónima de homossexuais incapazes de negar a sua essência e sem coragem para se assumirem, tentando formar uniões homoeróticas estáveis, a fim de saciarem os seus desejos proibidos, desde cedo têm que aprender a encobrir as evidências dos seus desejos e relações clandestinas. Relegados a freqüentar meios marginais, propícios apenas para encontros fugazes, exigindo um desfasamento entre a intensidade do acto físico e o investimento emocional. O vazio dessas experiências costuma ser disfarçado com uma incessante procura de parceiros, de sensações e emoções “diferentes”. A repressão comummente gera perversão. Dificilmente se poderão vangloriar de tais conquistas fora dos seus sombrios coutos de caça. A cumplicidade que reparei entre eles nada tem que ver com o investimento num projecto de vidas compartilhadas, mas é semelhante à que sobejamente conheci entre caçadores que, longe do olhar dos guardas florestais, mesmo caçando em solitário e podendo nem gostar de partilhar o campo com outros espingardeiros, encobrem as ilegalidades uns dos outros, numa sórdida confraria. <>... Denunciar parceiros de caça poderá atingi-los por ricochete ou por efeito dominó. Ninguém arrisca se envolver em purgas ou ajustes de contas, quando todos estão armados e abundam acidentes na actividade cinegética... Fora do ensino básico, em todas as escolas que “estudei”, deparei-me com professores com esse género de vidas duplas. Alguns deles tinham um discurso homofóbico. Talvez o apetite sexual do Freilão fosse incrementado com o gosto do fruto proibido com hormonas de crescimento para o seu ego que se regozijava de sair impune das transgressões. Com bastante auto-confiança, ele rondava e se imiscuía nas concentrações de adolescentes capazes de burlar a vigilância dos pais e de quaisquer outras figuras de autoridade. E nos observava, não tanto como um lobo faz em relação a uma manada de cervídeos em fuga, mas como um cão assilvestrado vê um rebanho de ovelhas num redil desprotegido. Nos seus discursos-padrão, não demonstrava ter a menor dúvida sobre a indefinição sexual das suas potenciais vítimas – qualquer garoto que lhe desse atenção. E se especializou em predar adolescentes desajustados, com dificuldades de socialização e enorme carência de figuras paternas dignas de admiração e de reciprocidade afetiva, capazes de inspirar rumos gratificantes e com um papel social relevante. Eu era apenas um entre imensos garotos que se encaixam nessa descrição. Mas eu jamais tive dúvidas quanto à minha orientação heterossexual; fantasias ou sequer curiosidade sobre experiências homossexuais têm estado de todo ausentes da minha vida sexual. Por si só, não creio que isso seja motivo de orgulho; menciono esse facto para enfatizar como me senti violado. O tardio despertar da sexualidade auto-reprimida, a exacerbada timidez (como me intimidavam as garotas pelas quais me sentia atraído!) e o domínio de pensamentos depressivos me tolhiam ao ponto de nem sequer dar motivos aos ossos de Samuel Tissot rodopiarem no seu túmulo. Em ambientes marialvas /machistas, onde o álcool espessa a ignorância, nos bares, nas sessões privadas de pornografia e nas raras festas, onde o sexo de vão de escada acontecia com facilidade, é que grande parte dos garotos julgavam “aprender” sobre o sexo oposto, enquanto consolidavam preconceitos. Lamento dizê-lo, mas as mães têm muita culpa nesse cartório. Começando por excluir os meninos das conversas, ou simplesmente das informações sobre a menstruação e todo o ciclo de fertilidade feminina. Disciplinar os rapazes na participação das tarefas domésticas (mantendo minimamente limpo e arrumado o espaço comum – nesse aspecto, a minha mãe falhou e eu fui um péssimo filho) é tão importante como deixar as crianças e adolescentes à vontade para falar com frontalidade e sinceridade sobre sexualidade. Nessa cultura hipocritamente homofóbica (em que, perpetuando o comportamento tipicamente pré-adolescente, era ostensiva e agressivamente repelido o simples gesto de, até entre amigos, alguém que se orgulhasse da sua masculinidade colocar o braço sobre os ombros de outro, a não ser, eventualmente, no futebol ou caindo de bêbedos) ainda vigorava o preceito que os pederastas (ativos) podiam manter intactas as suas reputações de machos viris (contando que também fodessem mulheres), enquanto que os que se deixavam sodomizar (os passivos) mereciam todo o desprezo. Usando subterfúgios culturais é provável que, da filosofia que se desenvolveu na antiga Grécia, ao Francisco Freilão apenas lhe interessasse as justificações para a pederastia, pretendendo consumar a utópica união entre a maturidade sapiente dos mestres e a beleza vigorosa da juventude. (É por isso que na arte renascentista, recuperando a estética Greco-romana, as representações pictóricas de Jeová, Moisés e outros profetas destacados do Antigo Testamento, assim como deuses da mitologia pagã, nos mostram geriátricas cabeças em corpos de lutadores peso-pesados no auge das suas capacidades atléticas.) Sócrates (469-399 a.C.) não tinha pudor em fazer apologia do coito anal com mancebos, considerando tal prática como a melhor forma de inspiração. (O sexo heterossexual para ele não passava de uma obrigação destinada à procriação.) Os homens mais velhos que procuravam esse tipo de relações (que me parecem imbuídas de nostalgia antropofágica ) apenas eram motivo de censura e escárnio quando se apaixonavam pelos seus jovens parceiros. Tal obsessão romântico-erótica era uma evidência de falhas na maturidade que toldava a razão/o raciocínio das mentes superiores , expondo-os ao ridículo (até porque poderia torná-los sexualmente passivos, assumindo uma indigno postura de subjugado). Era suposto que o desfrute de corpos jovens acarretasse responsabilidades pedagógicas e até financeiras, contribuindo para o sustento dos amantes, acreditando-se que assim estes últimos poderiam assimilar conhecimentos de filosofia e crescer como cidadãos virtuosos. (Ao completarem 12 anos, contando com a aprovação das respectivas famílias, os garotos escolhidos por adultos respeitados na comunidade ateniense, poderiam aceitar um relacionamento homoerótico – num papel passivo, pois só na maioridade era esperado que assumissem um papel activo na sua homosexualidade.) Se tivesse interesse e erudição etnográfica, talvez o Freilão até pudesse invocar rituais de passagem como os que ocorrem entre tribos malanésias (que habitam as ilhas Molucas, Nova Guiné, Vanuatu, Nova Caledónia, Fiji e Salomão, no oceano Pacífico), seguindo a crença que certos conhecimentos sagrados apenas podem ser transmitidos através de cópulas homossexuais, ou ainda através do sémen dos guerreiros engolido pelos garotos iniciados. Certamente que estou a teorizar demasiado (com o que erroneamente poderão parecer tergiversações num tom apologético que relativizam a responsabilidade de quem abusa) sobre um crime que não tem desculpa, até porque, com ardilosa improbidade, foi cuidadosamente arquitetado e reincidente, fazendo muitas vítimas. Mas demonizar os prevaricadores/criminosos impede-nos de atacar as raízes desse comportamento aberrante e danoso para toda a sociedade, resignados à incompreensibilidade das ações dos monstros e dos loucos. Incutir nas crianças o medo pelos estranhos pouco ou nada previne crimes de abuso sexual, cujas vítimas beneficiam duma assistência precária. Na segunda vez que aceitei o convite do Freilão para ir à sua casa (onde vivia com a esposa e os filhos), deu-me um bote traiçoeiro. Estando eu na sala, sentado no braço dum sofá e olhando alguns livros na estante, ele tentou desabotoar a minha camisa, dizendo para eu ficar à vontade naquela tarde calorosa. Mesmo me esquivando, ele ainda colocou a mão sobre o meu umbigo, elogiando a minha magreza que ele afirmava invejar. Foi quando se debruçou sobre mim e desceu a mão até os seus dedos tocarem o meu púbis. Levantei-me abruptamente, assoberbado por terríveis desconfianças e querendo ir-me embora de imediato. O rosto dele não revelava malícia ou desejo sexual. Sorriu tranqüilo. Apenas poderá ter sido denunciado por ter lançado um olhar fugidio (que consegui interpretar tardiamente) à altura das minhas virilhas, provavelmente procurando um inexistente resquício de desejo involuntário como reação ao seu toque intrusivo; pelo contrário, a pouca carne que ali cobiçou encolheu-se de tal modo que quase desapareceu de cena (precisariam fazer uma laparoscopia/ Sexagem cirúrgica na necropsia, caso o estupro se tivesse consumado...). Mesmo assim, com a confiança de Michelangelo prestes a assinar a Pietá, pediu-me para voltar a sentar-me, enquanto ele ia à cozinha buscar um copo de sumo para mim. Aquiesci. Qual o motivo que me impediu de fugir a toda a brida da toca da besta? É que, encimando as minhas confusas preocupações, receava que os meus preconceitos (os tais que o Freilão afirmava serem fabricados e disseminados principalmente pelas mulheres, quais bruxas de volta de um caldeirão, praticando magia negra...) estivessem a contaminar a minha percepção da realidade, traindo a “amizade” do meu anfitrião, cuja linguagem corporal naquele momento era mais conforme o que se esperaria de alguém inocente e despido de malícia; livre de conflitos interiores. A presença da sua filha adolescente, perambulando pelo apartamento sem nos dar atenção, parecia desacreditar os meus temores. Ele trouxe o suco prometido e sentámo-nos em diferentes sofás. Eu folheava uma revista, a fim de fingir calma e manter alguma distância. Mas mal a sua filha adolescente saiu para a rua, pulou sobre mim! Sendo um homem alto e gordo, certamente que pesava o dobro de mim. Horror, surpresa e asco me dominaram momentaneamente tanto quanto o seu peso ingente. Enquanto me debatia debaixo dele, o porcão me lambuzava a cara e o pescoço, enquanto a sua mão se insinuava por dentro das minhas calças e cuecas, alcançando a genitália. Suponho que se houvesse uma câmara oculta naquela sala, teria feito uns registos bem comprometedores daqueles instantes que me traumatizaram. Logo consegui fugir. Correndo rua afora, um turbilhão de pensamentos me desorientava e feria. Sobreveio o cliché da culpa assumida pela vítima: será que tinha sido eu a incentivar/provocar tal assalto sexual? Ou a minha mente era tão imunda e perversa que me atrevia a interpretar da pior maneira uma manifestação de afeto inconvenientemente efusiva de um amigo afetuoso que pretendia preencher a minha carência de pai? (Com freqüência, quando, de regresso das conversas de bar noite adentro, ainda com o seu carro parado à porta do prédio onde morava a minha avó, nos despedíamos como na nossa cultura costuma fazer as mulheres: com um breve beijo na face. Tal era um pedido dele que muito me constrangia, mas tentava ignorar esse desconforto com a determinação de me tornar um bom homem, construindo uma maturidade despida de preconceitos, principalmente os que pudessem macular a lealdade entre amigos...) Até de mim fiquei com nojo! Batendo de frente com a realidade, não compreendia como ele poderia ter traído daquela forma maligna a confiança e amizade que eu lhe entregara. Como pude ser tão cego e ingénuo?! Não havia maneira de sair ileso de tamanha maldade. Quem nunca passou por isso, poderá dizer <> Provavelmente até acrescentam <>, mandando calar as carpideiras. Tais considerações demonstram uma desprezível falta de sensibilidade, empatia e responsabilidade parental/afetiva que só contribui para o agravamento da péssima relação que temos com os mais vulneráveis da nossa sociedade. Depois desse dia, não mais se atreveu a me procurar. Estou certo que essa aliviante ausência não se deveu a algum peso na sua consciência, mas sim ao temor das conseqüências. Menos de uma hora após me ter agarrado à força, alcançou-me (de carro) quando eu estava prestes a entrar na mercearia que durante um curto período o meu pai e o meu tio geriram em improvável e desastrosa sociedade. O Freilão segurou-me o braço, forçando-me a ficarmos frente a frente, e disse-me: <> Não sei o que ele achou ter conseguido perscrutar em mim, mas concluiu (verbalizando)<> E entrou comigo na mercearia, ficando em amena cavaqueira com os adultos dos quais eu gostaria de ter recebido alguma proteção, principalmente de forma profilática. Felizmente que só nos encontrámos mais duas vezes. Preferimos nos ignorar mutuamente. Dificilmente terei conseguido disfarçar o ódio no meu olhar. Constatei que ele não alterara a sua tática de engate com as suas potenciais presas adolescentes, desbobinando as mesmas conversas de merda e jogos de manipulação. Fazendo o que gostaria que tivessem feito por mim, cheguei a advertir um dos miúdos aos quais ele pagava cervejas e passeava de carro (restritos a um circuito de bares e vielas escuras), mas ele levou a mal a minha intromissão. As feridas desse trauma (que ainda agora me custa muito relembrar e traduzir por palavras) se reabriram quando o escândalo de pedofilia na Casa Pia rebentou nos mídia, chocando os portugueses mais pelo envolvimento de figuras públicas. Ter ficado em silêncio tantos anos (até o crime prescrever) pesa-me na consciência, sabendo que tal faz de mim cúmplice por omissão de outros abusos sexuais perpetrados pelo Francisco Freilão. Havia ainda a ameaça velada de eu levar um tiro. Várias vezes me tinha dito que se sentia melhor andando armado (com uma pistola ilegal). Na primeira, ao perceber a minha expressão de repúdio em relação às armas de fogo, contou uma estorinha p`ra boi dormir, em que se fez passar por “herói revolucionário”, caçando fascistas e burgueses em fuga, logo após a Revolução dos Cravos. Medo maior era o de não acreditarem em mim, sobretudo um casal de amigos em comum que eu tinha em grande estima (sendo os que, para além da minha mãe, eu mais confiava, e tinham então o dobro da minha idade) e que preferiam desacreditar/ignorar os boatos que pesavam sobre a reputação duvidosa do Freilão, classificando-os de maledicência infundada, mesmo quando incluíam queixas de crianças conhecidas, cujos pais lhe abriram as portas dos seus lares, incautos ou desavisados da ameaça pedófila emboscada nos ritos de amizade falsa. É comum recusarmos acreditar nas feias verdades, até que estas despedacem o que mais valorizamos, ou apareçam no reflexo dos nossos espelhos... Eu tinha uma convivência próxima com um tio, pois ele, apesar de beirar as quatro décadas de idade, ainda vivia com a mãe, na casa da qual eu comia e dormia com freqüência, devido à proximidade com a “minha” escola e ainda por me permitir alguma distância geográfica das pessoas que me faziam muito mal onde eu residia. Foi esse tio quem me apresentou ao Freilão, transmitindo-me uma confiança que usualmente eu me coibia de depositar em pessoas que iam passando pela minha vida . Depois da referida tentativa de estupro que sofri, soube que esse parente (que tinha uma bagagem de vida algo estranha/ tartariana, até por ser toxicodependente, algo que então eu desconhecia) há muito tempo estava ciente da reputação de pedófilo/efebófilo, mas nada fez para me proteger; pelo contrário, incentivava essa “amizade”, afirmando que se tratava de um homem muito interessante, que muito me poderia ensinar... Durante esse período de má memória, algumas vezes escutei dele insinuações que eu seria gay e que o meu acne juvenil era suspeitamente parecido com os sintomas da SIDA, algo que eu já estava farto de escutar fora de casa, mas é mais difícil de aceitar vindo de familiares. Entretanto, percebi ainda que alguns dos meus “colegas” de escola que conheciam o Freilão de “outros carnavais”, ao me verem na companhia do “bicho-papão”, preferiram rir nas minhas costas, como se estivessem recostados na escuridão dum camarote assistindo a um espetáculo tragicómico, desfrutando dos dois previsíveis desfechos: ou a confirmação da estigmatizante/anatemizante boataria sobre a minha alegada homossexualidade, ou o que de facto aconteceu. Talvez o meu pai (que detestou o Freilão desde o momento em que o conheceu), ou eu mesmo, até quiséssemos fazer justiça pelas próprias mãos, trazendo mais desgraça à minha família. No mínimo, eu certamente seria o tema principal de fofocas, agravando os comentários ofensivos que me acompanhavam dentro e fora da escola. A minha vida já era bastante difícil. Nenhum outro homem forçou as suas mãos libidinosas sobre mim, mas voltei a experimentar ocasional assédio homossexual por parte dos automobilistas que me davam boleia. (A casa da minha mãe se encontrava numa localidade diferente da qual eu estudava; e raramente adquiri o passe escolar para o transporte rodoviário. Preferia arriscar a boleia, para poupar dinheiro à minha mãe e para evitar o bullying que sofria constantemente nos autocarros carregados de estudantes.) Passei a usar uma soqueira inglesa e uma faca de mato bem afiada. E estava disposto a usá-las, se me cruzasse com outro Freilão. O maior reflexo da minha fraqueza e incapacidade para lidar da melhor maneira possível com a sacanagem deste último, foi eu ter adotado um discurso homofóbico, transbordante de rancor. Mas tal teve curta duração. O que primeiro me tirou desse mau caminho foi a chocante constatação que, pelo menos em Portugal, o principal motivo que leva os adolescentes ao suicídio é a dificuldade de aceitação da sua homossexualidade. Somou-se a irritação provocada pela absurda dedução que a pedofilia é uma conseqüência quase inevitável da homossexualidade. Frequentemente escutava (e ainda escuto, mas não mais de pessoas às quais devoto amizade) a utilização abusiva do termo “antinatural” quando muitas pessoas se referem à atração homoerótica (tendo sido identificado o comportamento homossexual em mais de 1500 espécies; o celibato e a homofobia correspondem melhor ao que merece ser classificado como antinatural ). Não tardou muito para eu compreender, por dedução própria sem a orientação de adultos equilibrados e esclarecidos, a regra de ouro no que toca a assuntos de cama: se são adultos; há consentimento entre as partes envolvidas; não causam graves danos a si mesmos nem a terceiros (incluindo gravidezes indesejadas); mantêm a privacidade; então, cada um que se divirta como prefere e pode. Nestas condições, ninguém tem o direito de policiar a sexualidade alheia e muito menos de pretender regulamentá-la de acordo com os seus preconceitos.