segunda-feira, março 01, 2010

O Renascimento provocou na Igreja o desejo de patrocínio à ciência, através de severas restrições, a fim de esta provar que vivíamos num mundo espiritualmente morto; uma simples máquina criada para nossa conveniência, sem lugar para disparates animistas. O Vaticano tinha assim contribuído para a abertura da sua caixa de Pandora, pois a ciência ampliou os seus horizontes e objectivos, ao ponto de negar a existência de tudo o que não passa no crivo do método científico, onde não cabe o sobrenatural – incluindo a superstição religiosa.
Há ainda que considerar o impacto que os descobrimentos ultramarinos tiveram na psique européia. Os teólogos naturalistas, ainda às voltas com os mirabolantes bestiários, viram-se gregos/em palpos de aranha para tentar explicar, dentro do contexto canónico a que estavam obrigados, a origem de tantos animais e etnias estranhas aos europeus, sobre os quais a bíblia não fazia referências. (Recordemo-nos que este facto levou S. Agostinho a declarar, do alto da sua autoridade eclesiástica, como bispo e um dos principais doutores da Igreja, que não poderia haver seres humanos no “Novo Mundo”.) Um cálculo simples invalidava que coubessem todos na arca de Noé. Confrontados com abundantes contradições nas fábulas bíblicas e nos dogmas religiosos, para além do recurso à teoria da geração espontânea, inadvertida e paradoxalmente, as suas especulações/conjecturas pseudocientíficas lançaram as fundações do que viria a ser a teoria da evolução. Tal foi o caso de clérigos como Joseph D’Acosta, e Athanasius Kiroher, assim como os leigos, Sir Walter Raleigh e o Conde de Buffon. (Christian Moraes dos Santos, 2008)
Os animais que mais deixaram os europeus perplexos foram as espécies de primatas que, sabemo-lo hoje, estão filogeneticamente muito próximos de nós.
Mas muito antes de Charles Darwin, em 1619, um filósofo italiano chamado Lucilio Vanini perdeu a vida na fogueira da Inquisição por ter especulado que a humanidade poderia ter descendido dos macacos...
Até Carl Von Linné (1707-1778), o “Rei da Taxonomia”, chegou a um beco sem saída na sua busca pelas características fisiológicas que distinguem claramente o homem dos outros primatas, em especial os chimpanzés. Não tendo coragem para cometer a heresia de colocar o género humano emparelhado com os outros primatas, teve que criar um [género] exclusivo para nós: o Homo. O problema é que, para manter o sistema de classes elitista vigente, a humanidade tampouco poderia estar agrupada numa única raça. Assim, criou um falacioso/ilegítimo sistema de variedades humanas (ex.: Homo europeus, H. asiaticus, H. afer, H. americanus,...) que reforçou preconceitos (ex.: descreveu o Homo afer como sendo caracteristicamente astuto, preguiçoso e libidinoso).
A substituição do conceito de variedades pelo de raças deve-se ao médico (e fanático religioso) alemão Friedrich Blumenbach (1752-1840). Homo asiaticus, H. afer, passaram a ser designados por mongolóides e negróides, respectivamente. (Adrian Desmond & James Moor, 2009)


A pior herança de Charles Darwin

Pessoas idealista que, como eu, nutrem uma profunda admiração pela contribuição de Charles Darwin (1802-1882) à ciência – afectando radicalmente todos os ramos do saber -, não deixam de sentir um desconforto (elevado à náusea) pelas possíveis implicações que a teoria da evolução e a luta das espécies teve no ideário eugénico e nazi.

Nos seus livros, Darwin teve o cuidado de não extrapolar para as classes sociais a sua visão de competição exacerbada e inclemente que acreditava dominar a natureza silvestre. Desculpamo-lo, ou desculpamo-nos, com o argumento de que homens maus, por oportunismo cruento, fizeram, à sua revelia, forçaram interpretações deturpadas da teoria da evolução. Mas, sinceramente, seria ele um eugenista ou simpatizante das respectivas idéias – tão abomináveis quanto perigosas - em que se fundamentaram alguns dos piores crimes contra a humanidade?!
A bordo do Beagle, que transportava Charles Darwin, seguiam 3 índios originários da Terra do Fogo, Patagónia. Estes homens, um ano antes, haviam sido levados para a Inglaterra, onde foram submetidos a um processo de lavagem cerebral cujo objectivo era mostrar à sofisticada sociedade européia (liderada pelos ingleses) que era possível tornar selvagens em cidadãos exemplares (desde que não se esquecessem da sua inferioridade de classe...). Assim, foram convertidos em missionários e enviados de volta para as suas comunidades tradicionais, esperando-se que fossem capazes de as evangelizar.
Darwin apreciava a companhia destes exóticos novos cristãos, mas essa simpatia não era extensível aos restantes membros da sua tribo (por ele descritos como “selvagens miseráveis e degradados”) devido ao modo de vida antagónico como que o jovem naturalista acreditava ser o melhor caminho (inevitavelmente homogeneizador) para a humanidade. Como qualquer outro inglês “bem pensante”, para ele havia apenas que escolher entre a civilização ou a extinção. Darwin tentava não descriminar baseando-se na aparência etno-fisionómica, considerando que a educação dos civilizados tornava os homens melhores independentemente da cor da sua pele. Era-lhe inadmissível que os seres humanos continuassem na precária Idade da Pedra, brutos praticamente indistinguíveis dos animais silvestres que os rodeavam. De forma infelizmente recorrente, transpunha para as sociedades humanas as suas considerações pejorativas sobre as diferenças entre as intratáveis criaturas das matas e as gentis e obedientes bestas domesticadas.

No seu livro “The Descent of Man” (1871) Charles Darwin considerou a selecção sexual como a principal e mais plausível teoria para explicar as diferenças de aparência física entre as etnias humanas. Não restam dúvidas, nem aos seus piores detratores (geralmente fundamentalistas religiosos), de que este homem tinha uma mente brilhante. Mas, por mais genial que fosse, ele era também um produto da sua época (a vitoriana) e, como tal, tinha uma visão racista da sociedade.
O seu avô foi Erasmus Darwin (1731-1802), que, para além de ter conquistado uma sólida reputação como médico, filósofo e poeta, teve um papel muito destacado no movimento abolicionista. Nessa luta humanista, o neto honrou o seu nome ao se insurgir contra a escravatura que o chocou particularmente quando viveu no Brasil. Rejeitando igualmente a idéia de que as diferentes etnias (“raças”) correspondiam a espécies distintas, cada uma com o seu próprio ramo evolutivo.
Não obstante, Darwin aceitava, como se duma lei natural se tratasse, a hierarquização da sociedade humana nos mesmos moldes que os vitorianos projectavam em toda a natureza, numa pirâmide que partia dos seres inferiores e subia num crescendo de superioridade, à medida em que abordava/contemplava animais cuja organização social e aspecto os homens mais se poderiam identificar. Não é difícil deduzir quem colocaram no topo do Reino Animal...
Ainda hoje é comum aparecerem em manuais de biologia referências a seres inferiores e seres superiores, apesar de ser um facto aceite que “todas as criaturas viventes são parentes com exactamente o mesmo tempo de evolução desde um ancestral comum.” (Richard Dawkins, 2003)

Voltando ao livro “The Descent of Man”, Darwin, de acordo com duvidosos cánones estéticos eivados de racismo, diverte-se a fazer a seguinte consideração: “à primeira vista, parece uma suposição monstruosa que a negritude dos africanos tenha se desenvolvido através da selecção sexual. (...) A semelhança de um Pitheca satanas, +++ com o seu pêlo cor de ébano, grandes e rolantes globos oculares, onde sobressai o branco, e cabelo dividido ao meio no topo da cabeça, como um negro em miniatura, é quase burlesca.”
Na sua concepção do ramo evolutivo em que incluía os humanos, o negro australiano seria o candidato mais provável para confirmar a nossa ancestral ligação aos gorilas.

+++ Os cientistas renomearam o género, passando a designar-se por Chiropotes satanas. É um macaco da Amazónia oriental, cujo aspecto o tornou alvo de preconceitos e superstições que se reflectem até no seu desditoso nome científico.

Continuando com as referências à supracitada obra literária, Darwin declara não ter encontrado “diferenças fundamentais entre o homem e os animais superiores no que respeita às faculdades mentais.”(sic) Dando outro passo de gigante na sua ousadia visionária, considerou que até o pensamento abstrato e a consciência de si mesmo pulsavam, de forma rudimentar, nas mentes dos animais ditos irracionais. Só agora essa polémica ganha alguma força no foro/domínio científico. Para ele, a nossa moral provém de instintos sociais há muito enraizados na nossa história biológica. Dando ênfase à competição, adianta que o que nos impele a confraternizar e a cooperar não é um imperativo biológico superior aos instintos egoístas de auto-preservação e a necessidade de deixar descendência.

Darwin até teceu (por descargo de consciência?) algumas considerações condescendentes e até de compaixão para com os membros débeis da nossa sociedade, mas estas foram totalmente eclipsadas pelas suas mais chocantes declarações – tipicamente eugénica – em que comparou a criação de gado com o contraproducente amparo social aos ineptos : "Entre os selvagens, os corpos ou as mentes doentes são rapidamente eliminados. Os homens civilizados, por outro lado, constroem asilos para os imbecis, os incapacitados e os doentes, e nossos médicos aplicam o melhor de seu talento em conservar a vida de todos e cada um até o último momento, permitindo assim que se propaguem os membros fracos das nossas sociedades civilizadas. Ninguém que tenha trabalhado na reprodução de animais domésticos, terá dúvidas de que isto é extremamente prejudicial para a raça humana" (sic).
Não apenas se atribui a paternidade do movimento eugénico a Francis Dalton , um primo de Charles Darwin, mas os filhos do génio evolucionista, George e Leonard, foram fervorosos apoiantes da eugenia. Aliás, Leonard, chegou a presidir a Sociedade de Educação Eugénica, que liderou o movimento na Grã-Bretanha.
Numa das últimas cartas que Charles Darwin escreveu a Alfred Wallace, mostrou-se pessimista quanto ao futuro da humanidade porque “na nossa moderna civilização, a selecção natural não tem um papel proeminente” (sic). Assim, mais aptos não eram necessariamente os que sobreviviam e deixavam mais descendentes. (O termo “sobrevivência dos mais aptos” foi cunhado por Herbert Spencer, mas de imediato adotado por Charles Darwin.) Como toda a elite vitoriana, a Darwin atormentava a ideia de que “os membros marginais da nossa sociedade tendem a reproduzir-se a uma velocidade superior à dos providentes e geralmente virtuosos membros ”(sic).
Darwin foi fortemente influenciado por Malthus, que alertou para facto de que a população mundial estava a aumentar a um ritmo que iria superar a disponibilidade dos recursos naturais e a produção (técnica) de alimentos para satisfazer as nossas necessidades fundamentais. Essa reprodução inflaccionada era atribuída a exclusivamente aos “menos aptos”, ou seja os menos privilegiados, o que era visto como uma inversão do sentido que a evolução darwiniana deveria tomar.
Darwin considerava o seu modo de caçar um desporto divertido. De consciência leve, sentia-se confortável no papel de predador sofisticado sem responsabilidades afectivas e, menos ainda espirituais, com as criaturas e as respectivas biorregiões por onde deambulava aos tiros .
Há ainda que considerar o profundo abalo que teve para Darwin a morte muito precoce da sua filha mais velha. Pertencendo a menina a uma linhagem de homens brilhantes, e tendo acesso a todos os privilégios que o dinheiro podia comprar, a priori, poucas crianças do seu tempo estariam em melhores condições para cumprir o ideal evolucionista divulgado pelo seu pai. Com o seu falecimento, aparentemente sem sentido, Darwin confrontou-se com a brutal indiferença da natureza, não tendo encontrado nessa tragédia familiar algum sentido moral ou consolo espiritual. Nem tudo foi negativo na experiência traumática em causa, pois foi capaz de diluir um pouco as divergências teológicas entre ele e a sua esposa, fortalecendo a sua união e aumentando o respeito mútuo. O casal amava-se muito, mas ela tinha uma formação solidamente religiosa. Darwin receava magoá-la com a publicação da sua teoria sobre a origem das espécies. Alguns dos seus biógrafos afirmam que este foi um dos principais motivos que levou Darwin a adiar tanto a publicação das idéias revolucionárias que lhe trouxeram a fama.

Outra fonte importante (mas negativa) de inspiração para Darwin foi o economista escocês Adam Smith, que foi o principal teórico do que actualmente chamamos neoliberalismo (económico); a forma de capitalismo mais agressiva do colonialismo e dos impérios corporativos.

PB

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