domingo, março 21, 2010




Elogio aos Cínicos, Epicuristas e Hereges
Se a memória não me trai, em Portugal os dicionários dão-nos uma definição de “cínico” que nos remete para alguém que, à laia do método cartesiano, é extremamente céptico, pirrónico, com uma certa dose de rebeldia.
No Brasil, por via popular, essa palavra evoluiu para se tornar num adjectivo usado até à exaustão na designação de variados comportamentos imorais e socialmente condenados. O desprezo que os verdadeiros cínicos tinham pelas convenções sociais fez com que os baluartes da “moral e dos bons costumes” se empenhassem em transformar a palavra “cínico” num oprobioso sinónimo de “desavergonhado; impudico; obsceno; inconveniente,...” Mas o mais provável é que escutemos os brasileiros recorrerem ao conceito maldito quando se referem a pessoas consideradas falsas, mentirosas, dissimuladas, hipócritas.
Por influência da merda das telenovelas brasileiras, os portugueses têm vindo a adotar esta definição espúria.

Como os valores defendidos pelos cínicos chocavam de frente com os interesses estabelecidos, a evolução da palavra foi marcada pelo estigma do preconceito, à semelhança do que aconteceu, sob influência da Igreja, com a palavra “heresia” (que originalmente apenas significava “escolha; livre arbítrio” – algo que a Igreja jamais tolerou), ou, até por via erudita, com o epicurismo.
Actualmente “ímpio” é tanto sinónimo de “descrente, incrédulo, herege”, como de “cruel, bárbaro, desumano”...

Se querem ver um brasileiro perder as estribeiras e, no seu fanatismo ignorante, correr atrás de vocês com um martelo e pregos para vos crucificar, é só declararem que Jesus Cristo foi um cínico.

Os cínicos poderão ter influenciado Jesus Cristo, ou a construção do seu mito (que é uma súmula de vários outros mitos sacrossantos), uma vez que, ainda no início da Era Cristã, os seguidores desse movimento revolucionário eram comuns no Mediterrâneo Oriental.

A palavra cínico provém do grego Kyon (cyon, para os romanos), que significa cão; neste caso, referia-se concretamente aos cães vadios que abundavam nas cidades, e serviram de inspiração aos cínicos. Estes eram ascetas radicais que professavam e praticavam o total desprendimento. Mostravam um desprezo olímpico pelas convenções e instituições (incluindo a família), assim como pelo dinheiro e outros símbolos de poder mundano.
Também tinham pouco apreço pela higiene e aparência; usavam os cabelos longos e desgrenhados. Caminhavam descalços. Sem morada própria, possuíam apenas o manto que os cobria. Para eles, a honestidade era a mãe de todas as virtudes e o requisito principal para alcançarmos a felicidade. Propunham-se viver em conformidade com a natureza, o que não os impedia de se empenharem em “latir” contra os abusos das autoridades e de toda a elite que, através da coerção e do embuste, mantinham os seus privilégios baseados nas injustiças sociais. Os cínicos não se envolviam nos jogos políticos de acordo com as regras estipuladas (e viciadas) por aqueles que eram o principal alvo das suas contundentes e verrumantes críticas. A sua luta era tão pacífica quanto corajosa, disseminando idéias subversivas pelas classes desfavorecidas, cara a cara. Era uma boa forma de arranjarem sarilhos...
Antístenes (444-356 a.C.), de Atenas, foi um dos principais mentores deste movimento. Mas o filósofo Diógenes (412-323 a.C.) , de Sínope, tornou-se o cínico mais famoso. Duas estórias (meras lendas?) o definem de forma deliciosamente humorística.
Consta que quando questionado sobre o segredo da sua estóica / espartana resistência aos apelos e fraquezas da carne, ele masturbou-se em público. Terminado, retorquiu: “se ao menos eu pudesse matar a fome esfregando a barriga...”
Noutra ocasião, estava ele a dormitar ao sol quando foi visitado por não menos do que Alexandre, O Grande. O general macedónico declarou a sua admiração pelo mestre dos cínicos, e na sua prepotência magnânima, ofereceu-se para satisfazer qualquer pedido de Diógenes. Este, mostrando um ligeiro enfado por Alexandre lhe estar a fazer sombra, declarou: ”podes devolver-me o sol.”

De um modo geral (por ora colocando de lado as aberrantes contradições), nos evangelhos canónicos, a mensagem de Cristo é mais consensual do que a dos cínicos, pois prega a comensalidade sem provocar grandes abalos reestruturantes no sistema de classes vigente (não deixando de mostrar o seu pessimismo quanto à integridade moral e salvação espiritual dos ricos, afirmando que seria menos difícil uma corda passar no buraco de uma agulha, do que um rico entrar no seu reino celeste), relegando para um mundo sobrenatural comandado pela Divina Trindade as aspirações aparentemente igualitárias (proto-socialistas?! Nem por isso).
Jesus terá reagido violentamente contra a comercialização da religião, desafiando as autoridades rabínicas, notoriamente corruptas e sectárias. Até o baptismo que Jesus adoptou do seu mestre João Baptista foi um movimento subversivo que desafiava o monopólio da “redenção” centralizado no templo de Jerusalém. Só os judeus com recursos para poder ficar nessa cidade, e adquirirem os animais para imolar em nome de Jeová, poderiam auferir dessa “purificação espiritual”.
O baptismo era uma alternativa barata e até ecológica, atalhando para a união com o divino ao alcance de qualquer um. Os primos João e Jesus pareciam defender o desenvolvimento de vínculos espirituais tão holísticos quanto idiossincráticos, manifestando-se através de uma espontaneidade devota e piedosa que dispensa mediações institucionais entre o homem e o sagrado. Assim, todas as pessoas poderiam ser consideradas parcelas do sagrado – mas só seriam dignas dessa benção através da aceitação incondicional de certos preceitos e rituais religiosos. (O evangelho apócrifo de Tomé aponta um caminho herético, marcando claramente a posição de que não apenas Jesus era filho de deus; qualquer homem o pode ser, bastando para tal desenvolvermos a espiritualidade, entendida como o melhor investimento que Jeová fez em nós; uma benção inata. Tal nos salvará. Neste contexto, podemos ter acesso directo a deus sem passar pela intermediação hierárquica imposta pelos sacerdotes e os seus templos; quiçá até sem necessitarmos de Jesus...)

O profeta andarilho da Galileia, tal como nos é retractado na bíblia (o único registo “histórico” que atesta a sua possível existência), até que poderia corresponder à figura de um rebelde cínico, indómito perante os poderes instituídos; agitador de consciências oprimidas; defensor de um movimento social avesso tanto às normas tanto do império romano como da ortodoxia judaica, fazendo da aceitação pluralista pelos cultos religiosos (?), do pacifismo humanista e solidário (?), da humildade, da pobreza voluntária e da integridade entre o discurso e a acção pontos de honra.



“Agradece à natureza ter tornado fácil alcançar o essencial e custoso obter o desnecessário”_ Epicuro
“Os deuses nada necessitam; e as pessoas que mais se lhes assemelham, pouca coisa.” – Diógenes



Avesso a hierarquias rígidas, instituições autoritárias, cartilhas, dogmas, bem como a demagogia prepotente dos políticos, Epicuro (341-272 a.C.) decidiu fundar uma escola própria – chamada O Jardim -, onde ele e os seus amigos viviam valores comunais e libertários. Eram frugais e desprendidos. A sua insubmissão impressionava pela ausência de agressividade, optando pela candura álacre e pelo respeito mútuo e a interajuda. Gostavam de prazeres simples e associavam o prazer ao bem. Epicuro elegia a amizade como o maior prazer.
De vez em quando, Epicuro levava ao mercado os seus discípulos para que estes se sentissem agraciados por não necessitarem de tantas coisas à venda (e isto numa época em que a maioria dos produtos comercializados eram bens de primeira necessidade), e aconselhava-os a manterem-se longe da turba, a fim de conservarem a estabilidade emocional, a integridade moral e a capacidade de pensarem com clareza (preconizando a demofobia, não a misantropia).

Um dos pilares do seu sistema filosófico é que a aponia conduz à ataraxia. Através do autoconhecimento bem como pela observação dos outros animais, acreditavam que o homem possui um impulso inato para fugir à dor e procurar a felicidade. A seu ver, as “dores da alma” resultariam da insatisfação dos desejos. Neste aspecto, Epicuro aproximou-se da filosofia e métodos meditativos preconizados por Buda e outros mestres orientais. Defendia o auto-controlo e a capacidade de esvaziar a mente de tudo o que pudesse causar sofrimento (incluindo as paixões e a pena). A filosofia deveria um método suficiente para aplacar as angústias e outras insatisfações intelectuais/espirituais.
A filosofia epicurista não deve ser confundida com o hedonismo.
Os mais conservadores (basicamente, todos os que julgam possuir uma parcela do poder instituído, tudo fazendo para conservarem as estruturas sociais que lhes são favoráveis) costumam cumular de conotações depreciativas certos movimentos culturais contestatários, ao ponto de as suas designações oficiais se tornarem sinónimos de ofensas, de anátemas preconceituosos. Tal como a Igreja Católica durante o período Patrístico (do séc. I a.C. ao séc. VIII d.C.) se empenhou em denegrir os símbolos dos cultos pagãos da natureza e do sagrado feminino associando-os ao demónio. Com a passagem do tempo, esses termos ganham mais do que uma nova roupagem, mas uma nova identidade semântica. Isto tanto acontece por vox populi/via popular, como por via erudita. Assim, o adjectivo” epicurista” é utilizado para designar os bon vivan, dados à luxúria e à libertinagem. (Para não ser injusto com a Igreja e a burguesia, devo referir que até os contemporâneos dos epicuristas – apodados de “os filósofos do prazer” - por vezes faziam essa confusão.) Tais interpretações nada têm que ver com o que defendiam as correntes filosóficas protagonizadas por Epicuro, Antístenes (444-365 a.C.) e Diógenes (400-325 a.C.), respectivamente.


Até Pablo Neruda, no seu livro “Confesso que Vivi”, caiu nesse disparate semântico quando, ao descrever um banquete, que se supõe luculento e pantagruélico, utilizou o adjectivo “epicurista”.
Eis uma das citações de Epicuro que melhor ilustram esse mal-entendido irónico:
«Portanto, o hábito de um alimento simples e de modo nenhum refinado,de um lado confere saúde, do outro torna o homem alegre nas ocupações necessárias da vida, e se nós nos aproximamos, de vem em quando, a um teor de vida sumptuoso, nos dispomos melhor em relação a ele, e ficamos sem medo do destino. (...) Com efeito, não são os simpósios ou os banquetes contínuos, o aproveitar de jovenzinhos e mulheres, ou o peixe e tudo o que pode oferecer uma rica mesa que levam a uma existência feliz, e sim uma límpida capacidade de raciocínio que esteja consciente de cada aceitação e de cada rejeição, e elimine a vacuidade das opiniões, pelas quais a pior das perturbações surpreende a alma.» (........................)

Embora não tenha conseguido banir da sua dieta os produtos de origem animal, Epicuro favorecia a alimentação vegetariana.


Os epicuristas pretendiam saber a diferença entre desejos naturais e desejos frívolos. Um homem moderado deverá resistir tranquilamente às tentações hedonistas, fúteis, irresponsáveis e degradantes, que não conduzem à verdadeira felicidade até porque se tornam viciantes e insaciáveis.

Mesmo não procurando a renúncia total (e antinatural) dos desejos, procurava o equilíbrio psicofísico na satisfação imediata, mas disciplinada, das necessidades reais; os desejos mais naturais e fundamentais à natureza humana. Os homens poderiam e deveriam ser felizes recusando os excessos que são sempre danosos para o corpo e a alma. Para tal, precisam ter um profundo conhecimento da sua natureza, reconhecendo que a saúde é o principal reflexo do equilíbrio prazenteiro. A liberdade de escolha é fundamental para alcançar esses desideratos.
PB

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