quarta-feira, março 28, 2007

Estados Papais

Os Papas (que tinham a sede episcopal em Roma) acumularam tanto poder político e em bens materiais (incluindo grandes extensões de terras provenientes de doações) que acabaram por assumir o controlo político e militar sobre quase todo o centro de Itália.

No séc. VII, os monarcas franceses também doaram um vasto território (onde se incluíam alguns castelos) à Igreja. Esses bens imóveis (da Igreja) em território francês foram exponencialmente aumentados no séc. XIII, com os despojos da Cruzada Albigense rapinados aos latifundiários cátaros.

Os Estados Pontifícios são oficializados em 756 pelo Papa Estêvão II (numa altura em que o cisma religioso entre os cristãos do ocidente e os do oriente afigurava-se irreconciliável) e, com muitos revezes, conseguem manter a sua autonomia (em Itália) até 1870.

Era frequente o exército dos Papas fazer alianças com senhores da guerra. A ajuda militar prestada à Igreja era recompensada com títulos eclesiásticos e até nobiliários. Tal foi o caso de Carlos Magno que foi empossado Imperador do Ocidente devido à ajuda que este prestou ao Papa Adriano I no combate ao Rei Desidério. Com total promiscuidade entre a Igreja e o Estado, Carlos Magno nomeou leigos para altos cargos eclesiásticos.

Desejando o mesmo, em meados do séc. XII, Frederico I (Barba Roxa), emparelhou armas com o exército do Papa Adriano IV, a fim de combaterem Arnaldo de Brescia que representava a oposição republicana à hegemonia do Vaticano.

Por absurdo que se nos afigure à luz da conjuntura política actual, a Itália do séc. XIX foi marcada por lutas armadas entre a Igreja e as forças plebiscitárias e patriotas pela posse dos Estados Papais, rumo à laicização da sociedade.

Foi só em 1929 que a Igreja Católica, representada pelo Papa Pio XI, aceitou reconhecer oficialmente a soberania do Estado Italiano, assinando os «Pactos Lateranenses». Neste documento, o Estado (representado por Mussolini) reconhece os mesmos direitos ao Vaticano.

Católicos X Calvinistas

Vale a pena analisarmos a guerra religiosa (entre católicos e protestantes) que, durante pelo menos 3 décadas, dilacerou a França do séc. XVI, início do séc. XVII, a fim de não nos esquecermos dos problemas inerentes à promiscuidade entre o Estado e as religiões.

O casamento de conveniência (nem havia de outro tipo entre a elite) de Catarina de Medici (1519-1589) com Henrique, duque de Orleans (segundo filho do Rei francês Francisco I) levou-a a mudar de país (antes de cumprir 14 anos de idade), mas tal não foi suficiente para a livrar dos violentos conflitos político-religiosos que marcaram a decadência da sua família em Florença.

Alguns livros de história, mais ou menos romanceados e tendenciosos (de orientação claramente católica), retractam esta soberana como alguém que se empenhou arduamente para que católicos e protestantes se aceitassem pacificamente (ou que, pelo menos, desenvolvessem alguma tolerância religiosa) durante as guerras religiosas que tingiram de sangue a Europa na segunda metade do séc. XVI, início do séc. XVII, tornando-se uma embaixatriz para a paz, mas sem que os seus esforços diplomáticos tivessem o resultado pretendido e merecido. Não obstante, existem suficientes provas de que Catarina de Medici foi umas das pessoas com maiores responsabilidades nos massacres aos huguenotes.

Em meados do séc. XVI o Rei de França, Francisco II (1559-1560),estava politicamente dominado pelos duques (católicos) de Guise. (A esposa deste filho de Catarina de Medici era Maria Stuart, cujos tios eram os temidos Guise.) Ora, desde o início desse século que um número considerável de burgueses e até de nobres tinha aderido ao protestantismo, cansados do excesso de poder e de poder e de corrupção tanto da Igreja Católica como da corte real.

Os protestantes tinham protagonizado alguns movimentos insurrectos e iconoclastas (ex.: nos Países Baixos e em Espanha). Como se isso não
fosse suficiente, geralmente os protestantes eram pessoas com instrução acima da média e dominavam em muitos negócios que prosperavam numa época em que a Europa atravessava uma crise económica.

Os católicos não admitiam nenhuma concessão aos protestantes e estes últimos não reconheciam a "legitimidade divina" da autoridade monopolizada pela Igreja de Roma e pela monarquia católica. «Muitos
católicos sentiam que a tolerância à heresia entre eles era como uma doença no corpo de Cristo, que ameaçava desfazer o contrato celebrado entre Deus e o seu povo. A retórica dos padres mais populares coincidia em inflamados apelos à purga/lancetação
dessa infecção moral/teológica, restaurando assim a confiança de Deus e, consequentemente, a estabilidade social.» - C. T. Iannuzzo

Martinho Lutero chegou a identificar o Anticristo na pessoa do Papa, e este último declarou que os protestantes eram todos agentes do Anticristo e do demónio.

Em França, Paris, Montpellier e sobretudo La Rochelle haviam-se tornado bastiões desse movimento reformista – que tentou converter o próprio Rei.

Vendo a sua hegemonia (como religião de Estado) ameaçada, os católicos fizeram um ataque “preventivo” contra um grupo de calvinistas, quando estes estavam a celebrar uma cerimónia religiosa (na localidade de Vassy), chacinando-os com impiedosa covardia. A extrema violência que estes facínoras (liderados por Antoine e Guise) cometeram “em nome de Cristo e do Rei” era o resultado da bem implantada mentalidade cruzadista e inquisitorial que dava aos perpetradores/algozes a impunidade das obrigações messiânicas. Mas, desta feita, a vilania do braço armado católico não passou em “brancas nuvens”, tendo despoletado uma guerra que envolveu as super potências de então. Os huguenotes contavam com o auxílio da Rainha (Elizabeth I) de Inglaterra, ao passo que os católicos franceses eram aliados do Rei (Filipe) de Espanha.

Os escrúpulos não tolhiam o jogo de bastidores de Catarina de Medici, que fora discípula de Maquiavel. Ambiciosa,calculista, versada em intrigas e em conluios com ambas as partes contrincantes e em ataques traiçoeiros (até mandara trazer, da sua Itália natal, para a corte francesa hábeis envenenadores; especula-se que Margarida de Navarra poderá ter sido uma das suas vítimas mortais), a Rainha-mãe, logo após o sanguinário atentado de Vassy, escreveu à família (calvinista) Condé (que eram então os principais inimigos dos Guise) dando-lhes a entender que estaria do seu lado, caso decidissem eliminar os Guise.

Ela também boicotou o arranjo matrimonial (que muito convinha aos Guise) entre a viúva Maria Stuart e um herdeiro ao trono de Espanha de seu nome D. Carlos.

Entretanto, o trono de França é entregue a Carlos IX (1560-1574), que, por ser ainda criança, necessitou da regência da rainha-mãe, Catarina de Medici (que, para conquistar esse direito, teve que usar toda a sua influência e habilidade em manobras de bastidores, com o intuito de afastar da regência o Rei da Navarra, um líder huguenote ).

A Rainha Catarina sentiu-se forçada a reconhecer importantes direitos (ex.: liberdade de culto e de autonomia administrativa em algumas praças-fortes huguenotes) aos protestantes, na esperança de apaziguar substancialmente os conflitos religiosos que já tinham provocado um omnicídio.

Começou por promover o Colóquio de Poissy (que decorreu durante os meses de Setembro e de Outubro de 1561), onde as duas comunidades religiosas em feroz litígio deveriam debater quais as divergências e quais as afinidades doutrinárias e teológicas, procurando uma coexistência pacífica. Mas as pretendidas vias de entendimento foram seladas pela intolerância.

Perante o Vaticano, Catarina justificou a necessidade desta polémica reunião ecuménica com o argumento de que: «é impossível reduzir pela força das armas ou das leis os que se separaram da Igreja Romana, tão grande é o seu número.» (sic)

Durante o referido colóquio, o azedume preconceituoso várias vezes descambou para os insultos gratuitos, os impropérios e as mais terríveis ameaças. Os intransigentes clérigos católicos não se coibiram de manifestar o seu ódio à heresia; e os calvinistas também cometeram algumas falhas diplomáticas. No final ficou claro que as posições dos líderes religiosos das facções contenciosas eram irreconciliáveis, não estando dispostos a mostrar respeito mútuo pelo bem de toda a sociedade.

Catarina de Medici foi posta em xeque pelos representantes do Vaticano, pois estes afirmaram que a coroa francesa corria sérios riscos de se perder para os demonizados calvinistas (apoiados por nações que pretendiam subjugar a França) e que a própria alma da rainha poderia estar condenada ao inferno, se ela deixasse acontecer tamanha desgraça.

Mesmo assim, poucos meses depois, Catarina de Medici teve que promulgar o Edito da Tolerância.

A situação complicou-se com a perspectiva de um sucessor à coroa, Henrique de Navarra, ser protestante. Igualmente partidário dos huguenotes, era o almirante Gaspard de Coligny, que crescia em poder e popularidade no exército. A Rainha nomeara-o para integrar o conselho real. Consternada, Catarina de Medici viu como Carlos IX, que tinha acabado de atingir a maioridade, a cada dia que passava se tornava mais íntimo de Coligny, pelo qual nutria bastante admiração e respeito. Para piorar a situação, em 1563, Coligny praticamente entregou o porto de Havre aos ingleses. Catarina de Medici teve o brilhante discernimento de enviar uma tropa conjunta de católicos e de protestantes para repor essa situação.

Michel de L’Hôpital (que era simpatizante do calvinismo) foi também nomeado chanceler.

Teodoro Beza (1519-1605) foi amigo pessoal de Calvino () e difundia as ideias calvinistas com uma eloquência admirada até pelos seus inimigos (aliás, Beza foi o principal orador dos protestantes no Colóquio de Poissy). A sua grande influência nos mais importantes centros de decisão político-religiosos devia-se ao facto de ser catedrático na Academia de Genebra e ao fácil acesso que tinha ao Rei, não se coibindo de tentar converter os membros da realeza.

Provavelmente o maior receio da Rainha era que Carlos IX se aliasse ao príncipe de Orange, conduzindo a França numa guerra religiosa contra a Espanha, devido a estar sob influência de Coligny que pretendia o apoio do Rei à resistência protestante na Holanda contra Espanha.

Sobre o atentado contra a vida de Coligny, as duas versões mais acreditadas referem que, ou Catarina de Medici autorizou Henrique de Guise a fazer o trabalho sujo, ou, de forma ainda mais perversa, a rainha arranjou um matador anónimo com a intenção de culpabilizar os Guise, que, previsivelmente, seriam alvo de represálias por parte dos protestantes. (A crescente pressão que a família Guise fazia junto da Rainha para que esta se visse livre, pela força, dos huguenotes, estava a tornar-se insuportável, devido à sua arrogância desmedida.)

Mas Coligny conseguiu escapar apenas com um ferimento ligeiro. Estávamos na véspera do tristemente célebre «Massacre da Noite de S. Bartolomeu» (que, afinal, terá durado uns 3 dias, entre 22 e 25 de Outubro de 1572).

Por então, o ambiente em Paris estava extremamente tenso. A atmosfera podia-se cortar à faca, densa com ameaças de revolta e de vinganças. Os huguenotes clamavam por justiça em nome de Coligny. Por seu turno, os católicos estavam nervosos com a presença de tantos hugenotes (principalmente os que tinham acabado de chegar à cidade para assistir às celebrações do casamento de Henrique de Navarra e de Margot de Valois, que era filha da Rainha Catarina) à solta na sua cidade, pois consideravam-nos uns malditos subversivos, inimigos do Rei da Igreja.

Furibundo com com o ataque traiçoeiro de que fora vítima o seu amigo e conselheiro, além de estar muito preocupado com os tumultos nas ruas, Carlos IX pediu explicações aos seus conselheiros (católicos) e a Catarina de Medici. Alguns historiadores pensam que esta última descartou responsabilidades sobre os acontecimentos, e, lutando pela sua credibilidade política e, quiçá, até pela própria vida, amedrontou o jovem monarca com os rumores de uma sublevação de huguenotes que, liderados por Coligny, conspiravam para tomar o poder pela força, assassinando a família real.

Então, o crédulo Rei ordenou aos seus militares para que exterminassem todos os huguenotes que se encontravam em Paris. Inadvertidamente, os católicos (civis) entenderam essa ordem como uma carta branca para que participassem dessa orgia homicida.

Ao primeiro sinal de violência desatada, muitos parisienses católicos organizaram-se em milícias (a mais implacável das quais foi liderada por Henrique, duque de Guise), não hesitando em assassinar os seus vizinhos - sem sequer saberem o que havia de verdadeiro nas diferenças de doutrina, para além da boataria caluniosa, dos preconceitos e das frustrações invejosa que necessitavam de um bode expiatório. Para evitar confusões, tiveram o discernimento de se identificar com cruzes brancas nos chapéus - esse adereço era tudo o que diferenciava "o povo de Deus" dos "asseclas de Satã" nas trevas da intolerância ignorante...
Uns 6 mil huguenotes foram então mortos; muitos deles nas suas camas. Desta feita, nem Coligny escapou.

Estas notícias foram recebidas com júbilo no Vaticano. O Papa Gregório XIII apressou-se a exarar um Te Deum de acção de graças. E na corte espanhola, consta que o Rei Filipe II (que era genro de Catarina de Medici) , pela primeira vez na sua vida, se riu em público, ordenando em seguida aos clérigos para que estes organizassem celebrações pela vitória contra a heresia. (Alderi Souza de Matos)

Pelo contrário, Carlos IX definhou, consumido pelos remorsos, não chegando a viver mais 2 anos após os trágicos eventos da «Noite de S. Bartolomeu».

Os massacres repetiram-se noutras cidades francesas. As estimativas dos mortos variam muito, compreendendo-se entre 20 e 60 mil.

Temendo que Catarina de Medici estivesse a conspirar com o Rei de Espanha para consumar um genocídio total de huguenotes, estes tentaram um golpe de Estado em Meaux (o sul de França era então território huguenote). Tal foi um erro que pagaram bem caro. A monarquia católica, instigada pelo Papa, por toda a Europa passou a perseguir e a aniquilar os protestantes.

Quem sucedeu a Carlos IX no trono foi o seu irmão, Henrique III (1577-89), tendo-se revelado um político mais hábil, não estando disposto a ser manipulado pela sua mãe. O novo soberano francês percebeu que a unidade nacional (do Estado), bem como a economia, estavam à beira de ruírem devido às guerras fratricidas de cariz religioso, dando demasiada margem de manobra às pretensões hegemónicas de Inglaterra, de Espanha e até da Holanda. Por isso, o novo Rei, aparentemente, absteve-se de misturar demasiado a religião com os assuntos de Estado. A sua actuação foi algo dúbia. Engajou-se com os fanáticos da Liga Católica, mas acabou por mandar assassinar (em 1588) o seu principal líder, o execrável Henrique de Guise~~~~. Poucos dias depois, morreu também Catarina de Medici. E nem transcorreria meio ano até que a Liga Católica arranjasse maneira de se vingar na mesma moeda, com um regicídio que pôs fim à dinastia dos Valóis.

~~~~ Em 1587, o duque de Guise vence umas disputas armadas com os Bourbons, tornando-se na força militar e política mais forte de Paris. Aproveitando essa situação, pretendeu usurpar o poder do Rei. Graças a intervenção de Catarina (que até era neta de Joana de Bourbon, a família que dominava a realeza na aliada Navarra), Henrique III consegue fugir humilhado e consumido de desejos de vingança.

Os receios dos católicos quanto à orientação confessional de Henrique de Navarra revelaram-se infundados, pois este homem chegou ao trono (como Henrique IV, fundador da dinastia dos Bourbon) depois de abjurar o protestantismo, percebendo que era politicamente mais favorável estar ligado à Igreja Católica, pois a Liga Católica ameaçava-o de, caso tomasse o partido dos huguenotes (que já perfaziam cerca de 15% da população francesa), enfrentaria a morte – ou física, ou política, com os católicos a reclamarem uma sucessão legítima de outro monarca mais da sua conveniência.

Henrique IV reconheceu a Igreja Católica como a religião oficial do Estado, mas desgostou profundamente o Vaticano ao conceder direitos religiosos e políticos (na administração de umas 200 fortificações) aos huguenotes, através da promulgação do Édito de Nantes (1598)****. Assim, os calvinistas poderiam professar os seus cultos religiosos – desde que fora de um raio de 30Kms em redor de Paris. Ao saber disto, o Papa Clemente VIII ficou abatido pela tristeza, tendo declarado que «reconhecer a liberdade de consciência para todos, era a pior coisa do mundo» (sic)… (Alderi Souza de Matos)

****A deliciosa ironia é que Henrique IV conseguiu (pela primeira vez na história da Europa) impor a tolerância na jurisprudência francesa empunhando o Édito de Nantes numa mão e um revólver na outra, quando irrompeu nas cortes.

Em 1685, o Rei Luís revogou o referido édito, com consequências desastrosas

O povo francês saturou-se de tantos conflitos religiosos - que estavam a dilacerar e arruinar o seu país, mas que se alastravam a toda a Europa dividida entre a Igreja de Roma (que, por sua vez, já tinha sofrido um cisma com a deslocação, para Avinhão, do papado, por imposição do Rei Filipe, O Belo, tendo aí permanecido entre 1309 e 1377); as igrejas da reforma Protestante; e a Igreja Ortodoxa do Oriente. Assim, no séc. XVI, o conceito de tolerância religiosa foi introduzido na cena política. Um dos seus defensores foi o Partido dos Bons Franceses (que muito se inspiraram na longa tradição germânica de pluralismo religioso).

Michel de L’Hôpital conseguiu fazer vingar a ideia de que o Estado tinha que estar acima da Igreja, para o bem da nação.

Foi necessário consumar-se a Revolução Francesa para que, em 1795, as forças democráticas aprovassem a primeira declaração da separação entre a Igreja e o Estado. Mas durou pouco essa deliberação. Os líderes revolucionários (logo corrompidos pelo poder) pretendiam manipular as massas crédulas substituindo os velhos cultos cristãos pelo culto do “Ser Supremo” que representava o Estado revolucionário e o seu Regime de Terror.

Ironicamente, foi o ditador imperialista Napoleão I que autorizou a legalização da diversidade religiosa.

PB

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