O corpo exótico, espetáculo da diferença
Margareth Rago
RESUMO:
O corpo exótico foi construído como espetáculo da diferença a ser contemplado por todos, tanto como forma de lazer, quanto como objeto de investigação científica de prestigiados anatomistas europeus, desde o século XIX. É assim que o interesse despertado pelo corpo da africana Saartjie (Sarah) Baartmann, conhecida como “Vênus Hotentote” leva à sua captura na África e à exibição nas feiras, circos e salas de espetáculo de Londres e Paris, entre 1810-1815. Suas nádegas volumosas ensejam, depois de sua morte aos 26 anos de idade, a dissecação e conservação dos seus órgãos sexuais, até o século XXI. Viso evidenciar o racismo e o sexismo manifestos no desejo voyeurista de consumo do corpo diferente, como modo de relação ambígua e perversa com o outro, no mundo ocidental.
Palavras-chave: corpo exótico, diferença, Vênus Hotentote, racismo, sexismo, zoológicos humanos.
É inevitável associar a imagem do “corpo exótico”, no Brasil, às figuras do turismo sexual veiculadas na mídia. Já faz tempo que se construiu toda uma tradição imaginária em torno do mito do “paraíso tropical”, tão bem trabalhado por Sérgio Buarque de Hollanda, das terras virgens, dos rios caudalosos e das índias nuas, ansiosas “à espera dos portugueses priápicos”, na visão de Paulo Prado e da promiscuidade sexual reinante de que nos fala Gilberto Freyre, retomando as informações de Pero Vaz de Caminha e dos viajantes que o sucederam (PARKER, 1993). A figura da “mulata sensual” e as imagens do carnaval transbordante de cores e de energia e da alegria excessiva de todo um povo impregnam o imaginário social, como mostram vários estudos críticos atuais (BOCAYUVA, 2006).
Aqui, gostaria de perguntar por outro lado desse imaginário que move o turismo sexual: a visão dos europeus brancos sobre o Brasil, quando em busca do corpo das mulatas e negras do Nordeste, tentando reviver o mito do selvagem, do exotismo e da possibilidade de reencontro com uma origem paradisíaca perdida.
Nesse movimento, não há como deixar de considerar que somos transformados/as em parques humanos pelo olhar do visitante, o que leva a perguntar como se estruturou, na longa duração, esse olhar europeu sobre a alteridade, tanto quanto pelas condições em que emergem os zoológicos humanos. Nesses espaços, em que mulheres e homens substituem os animais, a fantasia e o desejo coloniais transformam o outro em corpo exótico, expressão da irracionalidade e da sensualidade excessiva, predomínio absoluto do instinto sobre a razão, logo, incapacidade de autogoverno. Em especial, é a figura feminina que se torna o principal repositório dos preconceitos sexuais e das estigmatizações construídas cientificamente desde as teorias da degenerescência, que floresceram na Europa do século XIX.
Na produção dos monstros masculinos e femininos de um mundo obcecado pela higiene, pela beleza e pela normalidade, são principalmente as mulheres que pecam por excesso sexual, em especial as índias, as negras e as prostitutas. Estas são consideradas mais atrasadas do que as “mulheres castas”, que também são vistas como inferiores em relação aos homens pobres, por sua vez, mais incapazes do que os proprietários brancos: as hierarquias de classe, gênero e etnia se constróem e se repõem. Em Freyre, por exemplo, as índias são consideradas tão ardentes quanto os portugueses, por si só mais viris do que os índios e os negros. Em suas palavras:
" Já não seria então, como no primeiro século, essa união de europeus com índias, ou filhas de índias, por escassez de mulher branca ou brancarana, mas por decidida preferência sexual. Paulo Prado foi surpreender 'o severo Varnhagen' insinuando que, por sua vez, a mulher indígena, 'mais sensual que o homem como em todos os povos primitivos [...] em seus amores dava preferência ao europeu, talvez por considerações priápicas´ (FREYRE, 1975,92).
Assim, no imaginário ocidental sobre os povos africanos, entre outros considerados diferentes e exóticos, o cérebro aparece como o lugar de medição da inferioridade da raça, enquanto os órgãos sexuais femininos revelam as taras e o desejo ninfomaníaco. Na classificação da sexualidade bestial, as mulheres situam-se entre a histérica e a ninfomaníaca.
Bhabha mostra como, para além do desejo de dominação, há um prazer no discurso colonial ao caracterizar o outro como sensual, inferior e degenerado (BHABHA, 2003). O corpo exótico, fetichizado e domesticado transforma-se em “degenerado”; logo, deve ser conhecido, aberto, devassado, exposto e espetacularizado como o corpo da “Vênus Hotentote”, dissecado pelo anatomista Georges Cuvier, nos inícios do XIX, ou da prostituta Naná, no romance homônimo de Émile Zola. A degeneração moral deve coincidir com a degeneração física, com as doenças que destroem e corroem o organismo e a sociedade, a exemplo da sífilis (CORBIN, 1991,141). Não foi diferente com o problema da AIDS em tempos mais recentes.
Bhabha aponta, ainda, como se produz o estereótipo por meio de uma forma de conhecimento e identificação ambivalente, que produzem efeitos de verdade e tornam possíveis os processos de sujeição. Dispositivo estratégico do poder, o discurso colonial apóia-se no reconhecimento e negação das diferenças raciais, culturais e históricas, “em termos dos quais se exerce vigilância e se estimula uma forma complexa de prazer/desprazer”. Este autor explicita:
"O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução. (...) Estou me referindo a uma forma de governamentalidade, que ao delimitar uma “nação sujeita”, apropria, dirige e domina suas várias esferas de atividade. (...) o discurso colonial produz o colonizado como uma realidade social que é ao mesmo tempo um outro e assim inteiramente apreensível e visível" (BHABHA, 2003,111).
- exotismo e degeneração
Sabemos hoje que, no mesmo movimento em que os negros/as eram trazidos da África para a diversão dos europeus, desde os inícios da urbanização, pelo comércio que enriqueceu muitos empresários, como Carl Hagenbeck, o conhecimento científico progredia fundamentando as diferenças raciais e sexuais, justificando a inferioridade biológica dos africanos, dos indígenas e de outros povos e legitimando a expansão imperialista e a dominação colonial (BANCEL, 2004, 29).
Durante todo o século XIX, homens e mulheres das tribos africanas foram levados à Europa para serem exibidos, ao lado dos animais, como lembra o narrador-símio de Kafka, no conto “Relatório para uma Academia”, nas feiras, teatros de variedades, espetáculos circenses e exposições universais, e para serem observados e estudados a fim de comprovarem-se as teorias médicas eugenistas sobre a superioridade da raça branca (KAFKA, 2003). Em se considerando os grupos de raças ditas inferiores, as mulheres eram definidas como ainda mais inferiores, pelo predomínio dos instintos sobre a capacidade racional.
Dos estudos da frenologia à teoria de Darwin, da craniometria à antropologia criminal, as teorias científicas evolucionistas não mediram esforços para provar a diferença hierárquica entre os povos, os gêneros e as classes. Lamarck formula a hipótese da origem animal do homem, retomada por Darwin, para quem a seleção natural e luta pela vida são determinantes fundamentais. O grande anatomista será Paul Broca (1824-1880), pioneiro no estudo da Antropologia física, que cria um modo especial de medir crânios. Césare Lombroso (1835-1909), médico e naturalista italiano, procura mostrar que a natureza do criminoso está inscrita em seu próprio rosto, assim como a da “degenerada nata” pode ser percebida no tamanho dos quadris, no formato da testa, no tamanho dos dedos, entre outros sinais corporais.(LOMBROSO; FERRERO, 1896, 1991). O corpo é o lugar de desvendamento e classificação científica dos indivíduos. Alcoólatras, criminosos, prostitutas e artistas entram nessa dança, que prossegue e se afirma com a Antropologia Criminal, reforçando as hierarquias de classe, gênero e etnia.
A teoria da degeneração é a resposta que a psiquiatria e a medicina legal oferecem, na segunda metade do século XIX, aos pânicos morais e às necessidades de “ordem social”, indispensáveis para manter a hegemonia burguesa (GARCÍA-ALEJO, 1987). O psiquiatra francês Benedict August Morel, herdeiro de Buffon (ROQUEBERT,1994), em Traité des dégénérescences physiques, intellectuelles et morales de l´espèce humaine et des causes qui produisent ces variétés maladives, de 1857, surpreende-se com o crescimento do número de doentes mentais, com a suposta decadência da raça, ameaçando os níveis da produtividade econômica. Evolucionista e apostando na teoria da hereditariedade, Morel afirma que as doenças mentais provêm de anomalias no organismo, que tendem a agravar-se, degenerando o indivíduo e corrompendo a família e a sociedade.
Os zoológicos humanos surgem nesse mesmo convulsionado período, continuando as exposições de “monstros exóticos” de épocas anteriores; contudo, marcam uma ruptura, pois agora trata-se de um sofisticado cruzamento de espetáculos e da produção de saberes. Dentre os povos africanos levados para a Europa, os koisan tornam-se muito conhecidos, lotando os auditórios dos circos e as exposições exóticas, servindo ao mesmo tempo como material empírico para as pesquisas antropológicas e para a construção do conceito de raça (FAUVELLE-AYMAR apud BANCEL, 2004, 116). A racialização do corpo diferente reforça a inferiorização biológica, nessa construção do olhar sobre o outro, que não deixa de ser uma valorização dos “civilizados” e que das elites passa para toda a sociedade. Segundo Bancel, ao fazer a genealogia do racismo, a construção desse olhar estigmatizador, desde final do século XVIII, precede a formação da identidade nacional, questão muito importante no século seguinte.
"Não há dúvida de que essas exibições etnológicas representam uma virada essencial na construção de um imaginário sobre o Outro, fundado em uma visão racista, legitimado pela ciência antropológica, que encontra uma mediação sem precedentes por meio dessa espetacularização. Os zoológicos humanos, verdadeira cultura de massa, instituem sob muitos aspectos, a relação com o Outro do Ocidente, pois a imensa maioria dos europeus e americanos terão seus primeiros contatos com as populações “exóticas” – logo majoritariamente coloniais – através desses enquadramentos, classificações e barreiras, que os separam desses “selvagens” (BANCEL, 2004, 6).
- da Vênus Hotentote
É nesse contexto que negras africanas foram capturadas para exibição em celas transportáveis pelos espetáculos itinerantes, feiras e exposições universais da Europa e dos Estados Unidos, a exemplo de Joyce Heth (BANCEL, 2004, 26) e que foram submetidas às pesquisas e estudos dos cientistas europeus e norte-americanos, preocupados em legitimar cientificamente a superioridade dos brancos, racializando e hierarquizando os povos.
Gilman destaca, em particular, a exibição da Vênus Hotentote pela Europa, durante cinco anos consecutivos, no início do século XIX. Nascida no Sul da África, com 1,35 m de altura, Saartjie (Sarah) Baartmann pertencia ao povo dos Hotentotes, ou dos Bushmen, e fora levada para a Europa em 1810, por causa da configuração diferenciada de seu corpo, com as nádegas muito salientes (esteatopigia) e uma espécie de “avental genital” na região frontal. Baartman foi exibida em Londres, no Egyptian Hall do Picadilly Circus, em espetáculos que hoje se chamariam de “freak souls”, lembra Citeli, mesmo sob a mira dos ataques dos abolicionistas:
"A apresentação em jaula realçava-lhe a natureza suspostamente perigosa e selvagem, a qual se associava a noção de sexualidade também perigosa, incontrolável. Para Stephan Jay Gould, a fama da Vênus Hotentote como objeto sexual provinha justamente das duas características que seu próprio apelido realçavam, ao combinar uma suposta bestialidade (“hotentote”) com as fascinação lasciva (“Vênus”). O interesse lascivo despertado pelas apresentações de Sarah fica explícito nos inúmeros cartuns que focalizavam suas nádegas” (CITELI, 2001,164).
Lembre-se, ainda, que nesse mesmo período, a ginecologia afirmava-se, assumindo que a mulher nascera para a maternidade e que não tinha desejo sexual expressivo, o que seria próprio dos homens e característico das “anormais”, como as prostitutas, - consideradas como “esgotos seminais” por Alexandre Parent-Duchâtelet - e das negras, mais libidinosas do que as brancas, porque biologicamente inferiores. Segundo o médico J.J. Virey, que se baseou nas descobertas de Georges Cuvier, a voluptuosidade nas negras constituía-se num grau de lascívia desconhecido no clima europeu, “pois seus orgãos sexuais são muito mais desenvolvidos do que os das brancas” (CUVIER apud GILMAN, 1994, 85). Era crença comum que as mulheres negras eram “especialmente receptivas sexualmente, devido à estrutura da sua genitália”, assim como que “o sistema nervoso grosseiro delas e as membranas mucosas secas resultavam em uma ‘necessidade de sensibilidade genital’” (LAQUEUR, 2001, 192). Como explica Gilman,
"a fisionomia, a cor da pele, a forma da genitália marcou as negras diferentemente. O século XIX percebeu a mulher negra como possuindo não só um apetite sexual “primitivo”, mas também os sinais externos de seu temperamento, a genitália ‘primitiva’( GILMAN, 1994, 85).
Os viajantes ingleses que foram à África descreveram o chamado “avental hotentote” como “uma hipertrofia dos lábios e ‘ninfae’ causados pela manipulação da genitália e considerados belos pelos Hotentotes e Bushman e por outras tribos.”
Sarah foi levada a Paris, por volta de 1814, onde fez sucesso no teatro de Vaudeville, sendo exposta diariamente por mais de doze horas. Atraiu caricaturistas e inspirou canções. Depois, foi vendida a um exibidor de animais, exibida em prostíbulos e espetáculos de saltimbancos e animais amestrados, como ursos e macacos, pulgas e percejos (BADOU apud CITELI, 2001,164).
No ano seguinte, um grupo de zoólogos e fisiologistas examinaram-na por três dias, no Jardin du Roi, - jardim botânico de vocação médica em Paris, antes chamado de Jardin royal des plantes médicinales -, enquanto um artista pintou seu nu. Cientistas como Henri de Blainville (1777-1850), Georges Cuvier (1769-1832), um dos fundadores da biologia moderna e seu colega, o zoólogo e biólogo Geoffrey Saint-Hilaire (1772-1844), - que passara sete anos no Egito, integrando a “Comissão de Ciências e Artes”, por iniciativa do gen. Napoleão Bonaparte e que acumulara, então, uma grande quantidade de animais e múmias humanas e animais - ocuparam-se da africana, em vida e mesmo depois de sua morte, em 1815, por pneumonia, ou por outra doença causada por forte ingerência de bebida alcoólica (FAUSTO-STERLING, 1995, 25). Em 1817, Cuvier, que era chair da cadeira de anatomia dos animais no Museu de História Natural, em Paris, especialista em criar novas classificações das espécies animais que aportavam com as expedições levadas a outros continentes, fez a autópsia de Sarah, dissecou seu cadáver, moldou e colocou as partes genitais em formol.
A apresentação da “Vênus Hotentote” por Cuvier, - que, segundo Gilman, “constitui o principal significante para a imagem da Hotentote como primitivo sexual no século XIX” – associava uma mulher da espécie humana “a mais baixa” com a mais alta da família dos macacos, o orangotango e descrevia as “anomalias” de sua genitália. Suas duas anomalias é que causavam grande interesse ao olhar dos europeus: a esteatopigia, ou nádegas protuberantes, característica das mulheres da tribo khoisan e a “macronymphie”, isto é o alongamento dos lábios inferiores (FAUVELLE-AYMAR, apud BANCEL, 2004, 111). O olhar estarrecido era, às vezes, insuficiente para uma platéia ansiosa; muitos aproximavam-se para apalpá-la e constatar se suas nádegas eram mesmo reais.
Como observa Fausto-Sterling, nesse universo misógino e racista, enquanto os homens eram comparados aos primatas superiores a partir da linguagem, da razão ou da cultura, as mulheres eram diferenciadas dos animais a partir de traços da anatomia sexual, como seios, presença do hímen, estrutura do canal vaginal, localização da uretra (FAUSTO-STERLING, 1995, 28). Aliás, em visita ao acervo de Paul Broca, no Musée de l´ Homme de Paris, Gould observa ironicamente não ter encontrado “cérebros de mulheres, nem o pênis de Broca, nem qualquer genitália masculina” (GOULD, 1985, 292).
Os africanos eram vistos como tão próximos do mundo animal quanto do humano, talvez constituindo o elo perdido na cadeia evolucionária, entre os macacos e os homens (LINDFORS, 1999, viii). Para Cuvier,
"Não é por acaso que a raça caucasiana chegou a dominar o mundo e fez o mais rápido progresso nas ciências, enquanto os negros estão ainda mergulhados na escravidão e nos prazeres dos sentidos...O formato de sua cabeça aproxima-os de certo modo mais do que nós aos animais” (CUVIER apud LINDFORS, 1999).
Morta aos 26 anos de idade, em 1825, Sarah continuou sendo apresentada como uma típica representante da inferioridade feminina, especialmente pelo tipo de genitália que possuía, - com uma espécie de “aba genital”, ou “avental” de pele cobrindo a púbis e um grande protuberância das nádegas - a qual, segundo os cientistas, aproximava sua tribo dos macacos (GILMAN, 1994, 88). Cuvier obteve autorização do prefeito para levar seu corpo ao museu, “onde sua primeira tarefa foi a de encontrar e descrever seus apêndices vaginais ocultos”. Segundo ele, as nádegas de Sara eram parecidas com os genitais inchados de mandris fêmeas e babuínos (grandes macacos africanos), “que cresciam em ‘proporções monstruosas’ em determinadas épocas de suas vidas” (FAUSTO-STERLING, 1995, 38).
Partes dos órgãos de Sarah, conservados em formol, integraram o acervo do Museu de História Natural de Paris, depois chamado de Musée de l´Homme, até 2002. Com a ascensão ao poder do líder Nelson Mandela, que se torna presidente da África do Sul, em 1994, e seu compromisso político de acertar contas com o passado e fazer justiça, foi lançada uma campanha nacional para que a França devolvesse os restos mortais de Sarah, episódio acompanhado pela imprensa nacional e internacional.(CITELI, 2001,174)
Não é difícil de entender que, ao longo do século XIX, os argumentos que condenavam a sexualidade feminina como patológica se reforçaram. Os médicos que desdobraram as pesquisas de Blainville e Cuvier associaram a má formação dos órgãos genitais com o desenvolvimento excessivo do clitóris, o que levaria a “esses excessos” conhecidos como “amor lésbico” (HILDEBRANDT apud GILMAN, 1994, 89). A figura da Hotentote foi assimilada à da prostituta e à da lésbica. “Mulheres negras representam tanto a mulher sexualizada, como a mulher como fonte de corrupção e doença”, adverte Gilman.(p.101) Estudos médicos do período, como os do dr. Parent-Duchâtelet e os da médica russa Pauline Tarnowsky, analisavam detalhadamente a fisionomia da prostituta, mostrando como os quadris eram maiores assim como o peso, entre outros dados que foram repetidos por várops especialistas, como Cesare Lombroso e G. Ferrero, em La Donna Delinquente.
"Lombroso aceita a imagem da prostituta gorda de Parent-Duchâtelet e a vê como sendo similar às hotentotes e às mulheres que vivem em asilos. Os lábios da prostituta são semelhantes aos das Hotentotes, senão dos chipanzés. A prostituta, em suma, é uma subclasse atávica de mulher" (GILMAN, 1994, 98).
Mas por que Sarah se tornou tão famosa, pergunta Fausto-Sterling? Por que os shows de deformidades e feiúra faziam tanto sucesso, na Inglaterra do século XVIII, pergunta Strother. Sarah participava de shows de monstruosidades, como animais estranhos, macacos amestrados, monstros, o “Homem mais gordo da Terra”, gêmeos siameses, anões e gigantes. Depois de seu show, vinha a “Vênus da América do Sul” e, em seguida, Tono Maria, um índio botocudo do Brasil exibia suas cicatrizes resultantes de adultério. Assim criaram-se visões de gênero, raça e sexo profundamente autoritárias e excludentes.
O Hotentote, que já era bem conhecido no imaginário europeu desde, pelo menos, o século XVI, firmara-se no século XVIII, “como uma figura quase sem linguagem, certamente sem religião e perigosamente perto de não ter nem a própria capacidade de pensar” (STROTHER apud LINDFORS, 1999, 13). Figura central da “iconografia da indolência”, Hotentote tornou-se sinônimo de “estupidez congênita” na imaginação popular.
Os historiadores mostram que o espetáculo em que Sarah era exibida associava a noção de fêmea selvagem com a de sexualidade incontrolável e perigosa. Nesse contexto, dizem Gilman e Fausto-Sterling, a bunda se torna um claro símbolo da sexualidade feminina. Para Strother, ao contrário de erótica e sexy, Sarah representava e assegurava uma figura do anti-erótico diante de um público europeu, “o que lhe permitia passar do “freak show” ao show etnográfico pseudo-educativo (...) incapaz de ameaçar o público com o poder sexual de uma ‘Vênus’ ” (STROTHER apud LINDFORS, 1999, 2).
- aos “reality shows”
As exibições midiáticas dos corpos das mulatas e sambistas do carnaval brasileiro talvez possam informar algo sobre esse sistema excludente de representações sexo/gênero, em especial, sobre a fixação sexual no “traseiro” das negras. Também poderíamos nos lembrar da garota L., de 15 anos de idade, que passou cerca de 20 dias numa prisão em Belém do Pará, com mais de trinta homens, submetida a abusos sexuais, violência e estupros seguidos, com o conhecimento e consentimento de todos (CAPRIGLIONE; BERGAMO, 2007). Em seguida, a “Folha Online”, de 8/2/2008, publica o artigo intitulado “Secretaria de Direitos Humanos comprova prisão de menina em cadeia masculina”, no qual informa:
"A Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) comprovou, nesta sexta-feira, a denúncia de que uma menina de 14 anos estava presa com outros 110 homens na cadeia pública de Planaltina (GO). Segundo o representante da secretaria, Firmino Fecchio, uma solução para o caso seria negociada com o juiz local. Para a SEDH, o local é inadequado para reclusão da menina e sua transferência para outra cidade que tenha centro de reabilitação de jovens é uma das possibilidades. Além disso, a secretaria vai tentar localizar a família da menina, que está presa há 13 dias. O diretor da cadeia, Reinaldo da Rocha Brito, confirmou que além da adolescente mais três mulheres estão presas no mesmo pavilhão que abriga os homens, embora em celas distintas. A cadeia tem capacidade para 49 detentos, mas atualmente existem 110. A unidade foi construída para abrigar presos que aguardam por julgamento."
A representação da jovem com um ser inferior que poderia sofrer abuso sexual e estupro livremente, inclusive com o conhecimento das autoridades públicas evidencia a assustadora permanência desse imaginário racista e misógino, construído há muito tempo.
- a revanche feminista
Estabelecendo uma aproximação e, ao mesmo tempo, uma distância entre as lutas feministas e o movimento ecológico, Celia Amorós afirma que
"se o ecologismo representa uma forma de consciência autocrítica profunda da espécie humana no que concerne à sua forma de inserção na e da relação com o conjunto das demais espécies naturais, o feminismo representa a autocrítica da espécie humana no que concerne à forma como esta tem exercido e definido seu próprio protagonismo como espécie" (AMORÓS, 1995, 217).
Segundo esta filósofa feminista, enquanto o ecologismo questiona e denuncia a maneira autoritária e destrutiva de relacionamento da espécie humana com a natureza, colocando-se hierarquicamente numa posição privilegiada, o feminismo critica o modo como a espécie se trata a si mesma. Segundo ela,
"Do mesmo modo que o ecologismo denuncia como a espécie humana tem maltratado a natureza – que é, ao mesmo tempo, a sua natureza – o feminismo denuncia como tem oprimido, como espécie, aquela metade de si mesma a que sempre definiu e fez identificar-se e carregar a cota de natureza, desde e sobre a qual pode constituir-se como cultura" (AMORÓS, 1995, 217).
Nada melhor do que o caso da Vênus Hotentote para revelar a misoginia do olhar e da ciência ocidentais. Nessa direção, o romance feminista de Bárbara Chase Riboud, de 2004, que traz o título dessa personagem, ganha destaque e remete a Walter Benjamin, para quem os historiadores do presente têm como missão salvar aquilo que no passado foi esquecido, realizando o que nos foi um dia negado (BENJAMIN, 1985). Situando-se estrategicamente no lugar de Sarah Baartman, a narradora desconstrói e denuncia os movimentos nervosos dos grandes cientistas que devassam ansiosamente seu corpo:
"Agora vamos proceder à dissecação do corpo da mulher batizada como Sarah Baartman, conhecida pelo nome de Vênus hotentote, que alguns de vocês já examinaram quando de seu comparecimento em 1815 (...) O cadáver está fresco e em perfeito estado de conservação (...) Como observei anteriormente, a conformação de Sarah surpreende inicialmente pela enorme largura de suas ancas, que ultrapassam 45 centímetros e pela saliência de suas nádegas, que é de mais de 16 centímetros. O restante do corpo e dos membros nada tem de disforme. Seus ombros, seu dorso, a região superior de seu peito são graciosos. A saliência de seu ventre não é excessiva. Seus braços têm algumas marcas de varíola, mas são muito bem feitos e suas mãos...charmosas (CHASE-RIBOUD , 2004, 393, 397).
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ROQUEBERT, Anne. 1994 . “La sculpture ethnographique au XIXe. Siècle: objet de mission ou oeuvre de musée?”, In: ROQUEBERT, Anne et alli. La Sculpture Ethnographique de la Venus Hottentote à la Tehura de Gauguin, Paris: Editions de la Réunion des Musées Nationau , p.5-32.
STROTHER, Z.S. 1999 .“Display of the Body Hottentot”, In: LINDFORS, Bernth (Org.) Africans on Stage. Studien in Ethnolkogical Show Business, Indianapolis: Indiana University Press.
nota biográfica
Margareth Rago é professora livre-docente do Departamento de História do IFCH da Universidade de Campinas, Unicamp . É coordenadora do Grupo de Estudos Foucaultianos e da Linha de Pesquisa História, Cultura e Gênero do Programa de Pós-Graduação em História deste Depto. Foi professora-visitante no Departamento de História do Connecticut College, nos Estados Unidos, pela Comissão Fulbright. Publicou vários livros: O que é Taylorismo? ,Brasiliense,1984; Do Cabaré ao Lar. A utopia da cidade disciplinar, Paz e Terra,1985; Os Prazeres da Noite.Prostituição e Códigos da Sexualidade Feminina em São Paulo, Paz e Terra,1989; Narrar o Passado, Repensar a História, com Renato Aloisio Gimenes ,Unicamp,2000 e Entre a História e a Liberdade. Luce Fabbri e o Anarquismo Contemporâneo, ED.da Unesp, 2001.
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