quarta-feira, setembro 06, 2006

Joseph Cornell, no seu livro «Partilhar a Natureza com as Crianças" (já um clássico da EA) relata um episódio pessoal em que, no seu entender, foi incapaz de garantir a protecção de uns elementos naturais que lhe eramespecialmente queridos, por carecer de conhecimentos científicos suficientes. Neste caso, o seu opositor foi um lavrador que abateu uma árvores decrépitas, ou mesmo mortas, situadas na margem de uma zona alagada visitada amiúde por Cornell. Uma dessas árvores servia de posto de vigia a um bútio-de-cauda-vermelha , ao qual o naturalista tinha-se afeiçoado e até ganho a sua confiança, ao longo de vários meses de convivência pacífica. O campesino "mau da fita" , convencido de que sabia o suficiente sobre as complexas interacções da natureza que o rodeava e sobre a gestãoprodutivista da terra a contento dos seus interesses pessoais, cortou e removeu todas as árvores referidas, sem se comover com os apelos do seu vizinho educador ambiental. Quando já era demasiado tarde, Cornell adquiriu mais informações científicasque, julga, poderiam ter salvo o “carvalho-poleiro” da ave de rapina sua amiga(que, entretanto, se ausentou daquelas paragens).
Cornell não está a ser justo consigo (mesmo). Esse exercício de especulaçãoretrospectiva e culpabilizante é inutilmente masoquista. Com frequência vejo colegas meus, que até têm uma "grande bagagem técnico-científica",ficarem frustradas em situações semelhantes por carecerem de suficiente poder persuasivo, sobretudo quando lidam com pessoas de estratos culturais muito diversos. É possível que se Cornell tivesse os dotes oratórios de um burlão, ou simplesmente tivesse pago ao agricultor para deixar ficar as árvores (como forma de indemnização por abdicar de toda aquela lenha), odesfecho da contenda lhe tivesse sido favorável, mas isso não significa quetivesse agido de forma melhor. O mais importante é que o seu "coração"estava no sítio certo e que fez o melhor que pode. Por melhores que sejam os nossos argumentos e as nossas intenções, não nos podemosresponsabilizar duramente pela incapacidade de mudarmoscom celeridade uma mentalidade secular fortemente enraizada. Este infortúnio de Cornell traz-me lembranças análogas.
Desde que, em meados dos anos 80, o pessoal da Quercus deu início a um projecto destinado à protecção da área que hoje é conhecida como o Parque Naturaldo Tejo Internacional, tiveram como prioridade a melhoria das condições das populações locais, tentando contribuir para uma maior harmonização entre asactividades tradicionais e a salvaguarda e divulgação do património natural. Com um pastor em particular tiveram uma relação muito próxima, consolidando uma amizade. Durante quase uma década de longas e prazenteiras conversas, vários membros daquela ONGA tentaram aprender o máximo da cultura vernacular do pastor, ao mesmo tempo que se esforçavam por o tentar reeducar ambientalmente, em especial no que se referia à sua apologia pelas técnicas agrícolas modernas e insustentavelmente agressivas (baseadas na forte intervenção de maquinaria), que pareciam fascinar todos os campesinos daquela região deprimida. A parceria não se ficou só pelas palavras, colaborando em muitas actividades práticas, com óbvias vantagens para ambas as partes.Um dos técnicos da Quercus até elaborou alguns projectos para que o ditopastor pudesse ter acesso a subsídios comunitários (ex.: MedidasAgroambientais). Mal chegou o dinheiro e foi logo gasto a fazer lavouras profundas (num solo já esquelético e onde nem se pretendia semear nada) e apodar brutalmente todas as suas azinheiras (reduzindo-as a uns moribundos tocos, destituídos de folhagem e de dignidade)...Exactamente de forma oposta ao que os seus amigos ecologistas (incluindo-me a mim) lhe tinham explicado(exaustivamente) ser o mais correcto.
Antes de eu andar à procura de aves rupícolas (que fazem o ninho nas rochas) de grande porte perto do Douro Internacional, uns colegas ornitólogos que batiam aquela área, estando preocupados pela frequente pilhagem e destruição de ninhos, decidiram, por iniciativa própria, pagar um tributo anual a um pastor que costumava apascentar o seugado nas cercanias de um ninho de águia-real, para que ele se tornasse ovigilante/protector desse ninho. Caso as águias em causa conseguissem levar a sua criação avante sem que o seu ninho sofresse um ataque intencional por mão humana, o pastor receberia a sua recompensa monetária.Volvidos um par de anos, esses ornitólogos deixaram de contactar com o pastor eprovavelmente até se ausentaram completamente da região. Por essa altura, passei por lá e encontrei o tal pastor. Este estava furibundo e exigiu que eu (que nem sabia do acordo) lhe pagasse pelos seus serviços de vigilância, caso contrário ele mesmo destruiria o ninho....
PB

Sem comentários: