Estórias de Educação Ambiental
(especialmente dedicadas a quem se queixa de que os meus textos são muito longos e que eu sou narcisista...)
Quando o naturalista, poeta, ensaísta, escritor, jornalista, educador ambiental, personalidade televisiva ligada à divulgação do patrimónionatural e agricultor biológico, Joaquín Araújo, escrevia regularmente para arevista espanhola "Integral", numa crónica especialmente comovente, contou sobre um costume seu de incitar alguns amigos que o visitavam na sua quinta a procurarem a árvore que mais os atraísse. Uma vez escolhida, atribuíam-lhe o nome da pessoa que a elegera. Uma das árvores que mais o cativara (tendo, inclusive, escrito muitos textos belíssimos à sombra da sua copa) era uma azinheira homónima da sua sobrinha. Mas a ligação entre elas duas tornou-se mais profunda do que a fonética/nomenclatura e até que os sentimentos efémeros, (re)unindo dois reinos que a ciência separou; duas entidades orgânicas e energéticas que as religiões ocidentais não admitem familiaridades. É que a menina tivera uma morte prematura, e as suas cinzas foram depositadas junto das raízes da sua árvore favorita - que continuou a dar amparo aos familiares que, com a chama do amor, continuam a manter viva a memória da criança. Joaquín Araújo termina essa crónica indagando-se sobre a razão de, ao invés de as nossas cinzas se tornarem árvores com nome, insistirmos em transformar as florestas em cinzas anónimas...
Há pouco mais de uma década, viajei com um pequeno grupo de portugueses até à Índia, mas primeiro tivemos que aterrar em Schipol/Amesterdão. Como o voo de ligação só partia no dia seguinte, vi-me na contingência de pernoitar na Holanda, onde fazia um frio de rachar naquele início de Dezembro. Afortunadamente, alguém tinha uns amigos que residiam naquele país. Avisados da nossa chegada, estes foram buscar-nos ao aeroporto e ofereceram-nos guarida na sua casa. Quando lá chegámos já estava de noite e eu mal espreitei pela janela do comboio entre o aeroporto e a casa dos nossos simpáticos anfitriões. O nosso avião partia cedo e, por isso, tivemos que sair de casa ao lusco-fusco. Para piorara as coisas, cobria-nos um tal nevoeiro que mantinha refém a noite e nos gelava até aos ossos, dando a impressão que seria possível cortar fatias do ar saturado com gotículas. Os halos fantasmagóricos dos candeeiros de rua não contribuíam muito para melhorar/abrilhantar a situação.
Os 5 minutos que esperei numa paragem de autocarros, ocupei-os a “namorar” uma árvore. Era uma espécie de carvalho que não cresce espontaneamente em Portugal, e que eu só vira uma vez no norte de Espanha. Por isso, apesar do seu porte modesto e de mal a poder ver, estava encantado por poder acariciar-lhe as poucas folhas que lhe restavam (pois era de folha caduca).
Foi esse o meu primeiro contacto com a Holanda e, além de não ter guardado quase nenhuma memória visual, saí de lá sem fazer ideia do nome da cidade onde pernoitara.
Dois anos mais tarde, a minha vida de andarilho desaguou na Holanda, onde vivi 7 meses.
Entre os meus amigos, sou conhecido por ter um bom sentido de orientação no campo (incluindo bosques cerrados), mas sinto-me perdido em qualquer metrópole, talvez por nestas últimas me sentir tão desconfortável que não consigo fixar pontos de referência que me sejam simpáticos, apenas desejando sair dali o mais rápido possível. Por isso, mal cheguei à cidade onde contava passar uns tempos, uma amiga prestou-se a ciceronear-me. Num estilo muito holandês, deu-me boleia no suporte porta-bagagens da sua bicicleta, e, enquanto pedalava pela cidade, ia apontando os estabelecimentos públicos que julgava me iriam ser de maior utilidade. Nada naquela monotonia aprumada de tijolo-burro e cimento me parecia familiar e atraente; o entusiasmo exilara-se dos meus olhos, até que, ao entrarmos numa avenida ladeada por árvores jovens – todas da mesma espécie, tamanho e forma semelhantes – eu pedi-lhe para parar a bicicleta. Apeei-me e corri para uma árvore que me despertara a atenção (embora parecesse igual às várias dezenas que se perfilavam naquela via). Ao manusear algumas das suas folhas, sorri e disse para os meus botões: «esta é a árvore com a qual travei amizade a caminho da Índia.»
Ainda hoje não sei como a reconheci com tanta facilidade, até porque, para além dos motivos já expostos, agora a sua copa estava toda vestida com uma folhagem de início de Verão. Mas não me enganei, pois, a partir daquela árvore, pude reconstituir (de forma quase automática ou intuitiva), por entre um labirinto de blocos de apartamentos semelhantes, os passos que me levaram ao apartamento (a uns 150 m da árvore) onde passara uma noite há um par de anos. Bati à porta e surgiram caras familiares e espantadas como eu estava. Uma delas até falava português. Tornei-me uma visita regular.
Seis anos depois encontrava-me a trabalhar numa quinta pedagógica em Espanha. Regressando da horta (biológica, claro), deparei-me com um recém-chegado grupo de crianças (urbanas) que tinha acabado de saborear um delicioso almoço campestre. Com os estômagos cheios e o calor primaveril a apertar, a maior parte deles preferiu fazer uma sesta. Mas um pequeno grupo de rebeldes decidiu ajudar a digestão explorando as imediações da casa. Foram estes que encontrei à volta de uma velha azinheira, ao lado do caminho florestal.
Provavelmente por terem assistido na véspera a um filme de acção estrelando um dos artistas marciais mais requisitados em Hollywood, os 4 rapazes (que teriam entre os 9 e os 12 anos) desferiam golpes contra a árvore, tentando, desajeitadamente, imitar a técnica dos seus heróis da violência. (Como não eram parvos ao ponto de se aleijarem despreocupadamente/deliberadamente , limitavam-se a acertar na árvore com paus e com as biqueiras das botas.) Ao ver aquele comportamento, dominou-se um misto de tristeza e de agastamento. Não podia passar ao lado fingindo indiferença, mas sabia que, quer os abordasse com um tom paternal-professoral, quer os repreendesse rispidamente, o mais certo seria que os pequenos rufias (habituados a desafiar autoridades ineptas e enfraquecidas, como forma de se afirmarem) gozassem com a minha cara e, mal eu lhes virasse costas, fariam ainda pior, sem que os meus argumentos os tivessem convencido minimamente. Então tive uma inspiração que, modéstia à parte, se revelou brilhante.
Apesar de nessa altura já ter transcorrido quase uma década desde que parei de praticar artes marciais de forma aplicada, ainda estava em condições de impressionar aqueles garotos (que fingiam ignorar-me). Parei junto deles e, mesmo antes de me apresentar (e sem ter o cuidado – fundamental – de fazer um prévio “aquecimento” muscular), executei uns golpes algo acrobáticos, na linha daquilo que eles fantasiavam ser capazes de fazer. Isso conquistou-lhes a atenção, deixando-os de queixo pendente. Foi o momento certo para me apresentar. Perguntei-lhes se queriam saber qual era o segredo da minha perícia atlético-marcial (ah, como eu detesto esta expressão inevitavelmente jactante). Como seria de esperar, responderam afirmativamente. Contei-lhes que, para além do treino e da capacidade de concentração, grande parte da minha energia provinha das árvores. (Se formos ao fundo da questão, até nem menti, embora eu tivesse preferido uma abordagem mais esotérica capaz de fascinar aqueles miúdos que só se deixam seduzir por figuras de ficção.) Eles olharam-me com cepticismo, mas permaneceram com um interesse bem vivo / expectante. Propus-lhes, então, que fizéssemos uma experiência capaz de tirar a limpo a minha inusitada afirmação. O que se seguiu foi uma versão telúrica daquele velho jogo (muito popular nas festas de estudantes universitários) que consiste em canalizar a energia do grupo, culminando no levantamento de uma pessoa (de uma forma demasiado fácil para as nossas conhecidas limitações musculares).
Expliquei-lhes que, como sempre tratara bem as árvores, elas retribuíam-me o amor, tornando-me mais forte, e que, se eles fizessem o mesmo, seriam capazes de erguer os colegas, tão alto quanto os seus braços fossem capazes de se esticar e utilizando apenas um par de dedos. Os miúdos entreolharam-se, desconfiando que eu os estava a tomar por tontos, preparando-me para lhes pregar uma partida e rir-me à custa da sua ingenuidade pueril. Instintivamente, franziram os sobrolhos e apertaram as pálpebras como fazem os míopes, tentando descortinar a minha expressão facial e toda a linguagem corporal, à procura de sinais de mentira. Como eu mantive uma expressão de convicção serena, aceitaram a minha proposta de colocarmos todos as mãos na árvore que eles, um pouco antes, tinham tomado por um saco de porrada. Disse-lhes que a árvore provavelmente estaria ofendida pela maneira rude como acabara de ser tratada, mas que, por sorte, as árvores são seres extremamente generosos e, como tal, não nos negaria a sua energia, sabendo que os miúdos não tinham, agido por mal. Fiz uma ressalva para que, caso não fosse bem sucedida a experiência por mim conduzida, não nos deveríamos sentir mal por isso; simplesmente teríamos que tentar mais tarde, realçando que nada de mal nos aconteceria se tivéssemos a coragem de acreditar que teríamos sucesso.
Começámos por experimentar levantar o garoto mais pesado usando apenas os nossos dedos indicadores. Previsivelmente, o resultado não foi espectacular. Pedi-lhes que, se queriam que resultasse, teriam que colocar as mãos na árvore e fazer o que eu lhes pedisse. Quando as palmas das nossas mãos estavam encostadas ao tronco da árvore, perguntei-lhes se conseguiam sentir que aquele era um ser vivo, mas que tampouco se preocupassem se não o conseguissem; demora o seu tempo a desenvolvermos essa capacidade. Ficámos concentrados, em silêncio, por cerca de um minuto. De seguida, pedi-lhes que nos déssemos as mãos à volta da árvore, continuando com a mesma atitude de seriedade ritual. Depois pedi ao rapaz gorducho para se sentar numa pedra junto da árvore. Aos outros pedi que para que sobrepuséssemos, de forma intercalada, as nossas mãos sobre a sua cabeça (mas sem lhe tocarmos), formando uma pilha fraternal de dígitos. Reiterei na necessidade de fazermos silêncio absoluto e acrescentei que deveria fechar os olhos de forma a aumentarem a concentração, garantindo-lhes que podiam confiar em mim, e que nos aproximávamos do desfecho da experiência que os iria impressionar imenso. Quando intui que estávamos preparados, dando o exemplo, pedi-lhes que cada um unisse os indicadores, mantendo os outros dedos entrelaçados, e que os colocassem nos sovacos e nas dobras interiores dos joelhos do miúdo com excesso de peso, e, contando até 3, levantámo-lo como se ele não pesasse mais do que a refeição que tinha acabado de ingerir.
Parecia que os corações dos rapazes lhes queriam saltar pelas bocas. Estavam deslumbrados e até algo assustados, como se eu tivesse aberto a porta da dimensão mágica onde vivem os seus heróis de ficção. Os seus olhos esbugalhados/arregalados, saltavam, frenéticos, entre nós e a árvore – esta última tinha subitamente ganho um estatuto de admiração que reservamos para o âmbito da teologia.
Despedi-me, dizendo-lhes que mais tarde iria passear com eles, mostrando-lhes coisas bonitas no campo. Segui caminho com a reconfortante esperança de que aquelas crianças tão cedo não maltratariam árvores.
Antes de partirem, ainda tive a oportunidade de lhes emprestar uns estetoscópios para que pudessem ouvir as árvores a bombearem a sua seiva, bem como a actividade dos invertebrados que vivem sob a casca, além de termos repetido a experiência da canalização da energia (sem que os miúdos mais pesados fossem relegados para a função de peso-morto). Expliquei-lhes que esta também funcionava sem recorrerem à energia das árvores, mas que os resultados seriam melhores da maneira como a tínhamos feito, até porque é purificadora a energia das plantas e, se as respeitarem, tornar-se-iam pessoas melhores. Um óptimo jogo para nos ajudar a reconhecer a individualidade das árvoresconsiste em prescindirmos do sentido que mais prezamos e de que maisdependemos: a visão. Agrupamos as crianças (embora gente de todos osescalões etários podem e devem fazer esta experiência enriquecedora,original e divertida) aos pares: uma terá os olhos vendados e a outra será asua guia. Esta última terá a responsabilidade de conduzir o/a companheiro/a (cuidando do seu bem estar, não abusando da sua vulnerabilidade) até umaárvore (que esteja a, pelo menos, 15 metros de distância e inserida numaárea florestada). Uma vez alcançada, a criança temporariamente privada davisão deverá ser encorajada a fazer uma minuciosa exploração dereconhecimento da árvore, recorrendo aos seus outros sentidos. A melhormaneira de a ajudarmos nesse processo de descoberta e memorização (ex.: a forma, a textura, o cheiro,...) é fazendo-lhe perguntas do género:«consegues abraçá-la completamente?» Se não, «imaginas qual é o seudiâmetro (grossura), circundando-a sem deixar de a abraçar?»; «é maciça ou oca?»; «é uma árvore viva ou morta?»; «será mais velha que tu? Porquê?»; «a que altura estão os primeiros ramos?» (Para responder a esta questão, poderá ser necessário pegar na criança ao colo, soerguendo-a até as suas mãos tocarem nos ramos). « A casca é macia ou áspera?» ; « tem um lado mais húmido que o outro?»; «tem cheiro?» Se sim, «o da casca é diferente do das folhas (ou agulhas)?»; «que seres vivem nela?» para responder a esta pergunta, deverá ter uma experiência dúctil / táctil com os líquenes e com os musgos (caso os haja, evidentemente). As crianças gostam muito de, com a pele sensível da cara, trocarem carícias com o musgo húmido. Também deverá concentrar-se em tentar ouvir as aves (através das suas vocalizações, poderemos tentar imaginar, geralmente com bastante acuidade, o tamanho que elas têm) ou, eventualmente, as actividades dos insectos.
As crianças deverão tomar o seu tempo, de forma não competitiva, até que consideram satisfatória a sua exploração/reconhecimento invisual (mas muito estimulante para os outros sentidos quotidianamente substimados). Depois será conduzida de volta ao ponto de partida, mas tendo o cuidado de lhe darmos uma voltas desorientadoras. Quando remover a venda, terá que partir ao encontro da "sua" árvore. Uma vez descoberta, trocará de papéis com a criança que lhe serviu de guia .Este tipo de emoções deverão preceder e servir de cadinho aos conhecimentos taxonómicos. Saber o nome e pormenores fisionómicos de algumas pessoas diz-nos pouco sobre a melhor maneira de nos relacionarmos com elas. Como diz o povo: «há muitas Marias na terra», mas todas têm personalidades e histórias pessoais diferentes, inclusive as gémeas idênticas. O mesmo se passa com as criaturas silvestres. Não é por servos pouco versados em hidrologia, nem por desconhecermos o nome de um ribeiro de montanha que ficaremos impedidosde nele matarmos a sede, mitigarmos o calor e de sermos contagiados pela sua beleza e serenidade cantarolante. Se formos capazes de desfrutar de tudo isto, seremos mais activos (e menos vulneráveis à corrupção) na defesa desse património natural.Um educador ambiental tem que nutrir um amor sincero pela natureza e saber partilhá-lo, de forma contagiosamente entusiasta, honesta e com uma grande dose de sentido de humor. Isto também significa saber ouvir, não desprezando as reacções e observações dos seus interlocutores, mesmo que as considere erradas. Devemos sempre incitar à curiosidade e à participação construtiva. É preciso estarmos disponíveis para as crianças, mas sem as asfixiarmos com atenções, tarefas e a obsessiva imposição de conhecimentos científicos. É preciso os educadores terem "jogo de cintura" para saberem interpretar e adaptar tanto as informações teóricas como a metodologia à realidade socio-económica de cada grupo, bem como ao estado de ânimo de cada criança em particular (para tal, necessitamos de um ensino mais personalizado, afectuoso e com respeito idiossincrático)
PB
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