domingo, junho 28, 2009


Jacó despejado

(Só em Coimbra ouço chamar “Jacó” ao caixote do lixo. Suponho que se trata de uma reminiscência anti-semita tão anacrônica que há muito o povo lhe esqueceu o significado.)


Agora chamemos “à pedra” o carácter do personagem bíblico que foi escolhido para ser o pai biológico, ideológico e espiritual das 12 tribos de Israel; dar o seu nome ao povo de Jeová; e receber de Abraão os privilégios e incumbências de manter viva a aliança com deus, como se este último fosse um latifundiário e agente imobiliário… Falo de Jacob (vulgo Jacó).
Diz a bíblia que ele já lutava com o seu irmão gémeo no ventre da sua mãe, Rebeca, infernizando-lhe a gravidez. Isaul foi o primeiro a nascer, mas essa vantagem social foi um conquista de segundos, pois Jacob surgiu para a vida terrena agarrado ao tornozelo do seu irmão!
Este episódio é paradigmático da psicologia de Jacob, e serve de prenúncio ao modus operandi característico dum homem que nunca se conformou em ser preterido, fazendo as suas próprias regras, independente da moralidade das mesmas, que lhe permitiram ultrapassar as adversidades com recurso frequente ao dolo. Sim, Jacob tornou-se num pérfido manipulador que até ditou imposições a Jeová!
À medida que os referidos irmãos avançavam para a maturidade, acentuavam-se as diferenças de carácter e modos de estar na vida. Isaul era atlético e corajoso, com um amor especial pela vida ao ar livre, aprimorando as suas habilidades como caçador. Por oposição, Jacob preferia o conforto das tendas, ruminando a frustração por não ser o filho primogénito e concentrando-se no desenvolvimento de esquemas maliciosamente astuciosos.
Um dia, após uma longa deambulação pelos agrestes (porém, afáveis) ermos, dominado pela fome, Isaul regressa ao acampamento familiar. Aí encontra Jacob a cozinhar um acepipe da sua preferência, e pede-lhe que compartilhe a refeição. Como oportunista sem escrúpulos, Jacob vê na fraqueza do irmão uma oportunidade imperdível e propõe comprar-lhe o direito à progenitura em troca de uma malga de guisado. Incrivelmente, o esfaimado Isaul concorda com a vil negociata.
Aqui devo abrir um breve parêntesis sobre a importância da progenitura para a cultura e a época em causa. O filho (varão) mais velho herdava a maior parte do legado paterno. (Sendo uma sociedade patriarcal, os homens tinham o monopólio das riquezas materiais.) Não se tratava apenas dos valores pecuniários; também arcavam com os compromissos de honra e até com as eventuais dívidas do pai. Tinham o direito de prioridade no casamento e na maior parte das decisões relevantes para a vida comunitária. Neste caso, uma modesta ração valeu a Jacob tornar-se no representante fiduciário da aliança celebrada entre Jeová e Abraão.
Pouco depois, em conluio com mãe, Jacob ludibria o seu idoso e cego pai (de uma forma que abona pouco a favor da inteligência deste último, bem como diminuindo a humanidade de Isaul, forçando a sua parecença com as bestas), fazendo-se passar por Isaul com o propósito de conseguir receber de Abraão a bênção exclusiva dos primogénitos. E conseguiu-o, ficando oficializado, de forma irrevogável, os seus direitos usurpados ao irmão.
Quando Isaul se inteirou do sucedido, foi dominado por uma fúria fratricida. Jacob escapou a uma morte certa empreendendo uma longa e árdua viagem em direcção à casa do seu tio Labão. Como não estava familiarizado com o meio silvestre, Jacob esforça-se por dominar o pânico, convencido de que seria presa fácil de demónios. ( A natureza como um reino de criaturas maléficas...que outra coisa poderíamos esperar do povo da bíblia?) Contrariando os seus piores receios, ao adormecer ao relento na serrania de Bethel, acabou por ter um sonho epifânico. Mas tal não foi suficiente para o acalmar, reforçando a sua fé na protecção divina. Demonstrando uma arrogância incomensurável, Jacob negoceia com deus, impondo a Jeová uma série de condições (ditadas pela sua covardia egoísta). Se estas fossem cumpridas por providência divina, Jacob comprometia-se a aceitar adorar e servir Jeová.
Enganado por seu tio, Jacob casou com as suas primas (irmãs uma da outra – o que é proibido pela bíblia), embora só desejasse a mais nova delas. Tratou-se de um género de justiça poética (pela mão de Jeová) devido ao embuste que vitimara o seu pai e o seu irmão.

Ao fim de duas décadas, quando Jacob já estava rico e com uma numerosa prole, Jeová decidiu que era chegada a hora do encontro reconciliatório entre os filhos de Abraão, e enviou Jacob de volta à sua terra natal. E lá partiu a comitiva familiar montada em camelos e seguida de servos e de numeroso gado.
Na vizinhança do lar paterno, Jacob envia como embaixadores (ou “bois de piranha”?…) alguns dos seus escravos com a missão de, através da oferta de um grande e variado rebanho, tentarem subornar o perdão de Isaul. Este, para além de pastor, era também um chefe militar seguido por 400 guerreiros. Apesar de todo o aparato militar que rodeou o encontro, tudo acabou em sorrisos e abraços.
Jacob é ainda protagonista num dos episódios mais bizarros e enigmáticos da bíblia, ao ter pelejado toda uma noite, até à alvorada, com um ser celestial. Como pior ferimento, Jacob recebeu uma coxa deslocada. Mesmo assim, agarrou-se ao seu opositor determinado a não o deixar ir embora enquanto este não o abençoasse!...
Impressionado, o anjo (?) "rebaptiza" Jacob, dando-lhe o nome de Israel, nome que em hebraico
significa «aquele que luta com deus».
No meio de toda esta bizarrice, não é fácil compreender que um povo profundamente religioso (e que reclama a sua identidade e alegada superioridade baseada na sua cultura espiritual) tenha na sua origem e pátria um nome algo blasfemo que define a intrínseca belicosidade dos seus descendentes dispostos a tudo para sobreviver numa terra de escassos recursos naturais e exacerbada competição.
Temos que ter em conta que, ainda hoje, os judeus acreditam que os nomes contêm a essência dos seus portadores. (Por exemplo, alguns judeus que sofrem de doença prolongada chegam a adoptar um novo nome que evoque saúde, esperançosos de serem contagiados e salvos pelo poder mágico desse nome. Provavelmente trata-se de mais uma herança cultural do antigo Egipto, onde os monarcas se vingavam simbolicamente dos seus inimigos, incluindo os seus predecessores a ocupar o mesmo trono, não apenas mandando apagar os seus nomes dos monumentos e outros registos históricos, mas também escrevendo-os em peças de cerâmica que quebravam num ritual que hoje poderíamos chamar de “rogar pragas”. Muitas religiões africanas bem como as suas descendentes directas que proliferam no continente americano mantêm essa superstição. ).
Enfim, é neste género de parvoíces que acredita a vasta horda de seguidores das religiões abraâmicas (cristianismo, judaísmo e islamismo). A crítica mais polida que lhes posso fazer é que têm um fraquíssimo sentido crítico. Na realidade, a maioria das pessoas decentes que jura pela bíblia mal faz idéia do que lá está escrito, limitando-se a seguir fragmentos de lendas, mitologia, propaganda e doutrinas que foram sendo inventadas muito depois dos evangelhos canônicos terem sido escritos, compilados e postos ao serviço de impérios.

PB

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