«As crianças são uns anjinhos que todos protegemos…»
Quando eu andava no antigo 8º ano, já estava acostumado a limitar-me a assinar os testes de matemática, podendo bazar essa hora para algum jardim, enquanto os meus “colegas” (ou seja, uma cambada de garotos unidos por um aleatório desfurtúnio comum, não pela sintonia de interesses ou de carácteres) ficavam encafuados na sala de aulas a queimar os neurónios com parvoíces inúteis.
Mal sabia eu que o sistema tinha a faca e o queijo na mão para consumar a sua implacável vingança disciplinadora –, para além da falta de dinheiro e do idealismo ainda por consolidar, a merda da matemática acabou por boicotar-me as vestigiais aspirações a tirar um curso “superior” de artes plásticas ou de ciências da natureza. Aprendi muito mais e melhor como autodidacta em cerca de 20 anos de estudo diário - por gosto e sede de conhecimentos, não para mera acumulação de créditos académicos, aumentos de ordenado e outros símbolos de poder e prestígio social que sempre mereceram o meu desprezo – , tanto acumulando informações científicas minimamente independentes dos poderes político-corporativos, como andando no campo (algo que, por mais absurdo que pareça, poucos biólogos fazem), labutando com muitas ONG e viajando fazendo curtos estágios (que geralmente resultavam em frutíferas amizades) com verdadeiros mestres à escala mundial das matérias que mais me interessavam, tornaram-me bastante competente em actividades como a ornitologia, a herpetologia, a mastologia; o eco-turismo; a educação ambiental; e a fotografia de natureza.
Nos últimos 3 ou 4 anos, através de uma auto imposta uma severa disciplina de leitura e escrita, creio ter quase mantido sob controlo o problema da dislexia (algo que nenhum professor se molestou em tentar diagnosticar, preferindo as frequentes humilhações à frente dos “colegas”, porque eu dava demasiados erros ortográficos…FDP!).
Mas nada disto vale um chavo no «País dos Doutores», onde oscilamos entre o analfabetismo funcional, cuja boçalidade servil e deslumbrada é sobretudo uma herança do Estado Novo; e a ignorância pedante dos que acham que um canudo é um posto numa casta superior, só porque tiveram o privilégio de andar uns anos a decorar definições ~ estéreis que despejam nos testes para esquecer no dia seguinte.
A verdade é que, mesmo tendo sido entregue ao Estado para ser instruído (não educado, o que é algo bastante diferente) na incubadora do trabalho arregimentado, se, por um “milagre” burocrático, tivesse beneficiado dos serviços de bons professores, tê-los-ia seguido como se fosse um cachorrinho, até porque devido à idade conturbada e à situação familiar deplorável, ainda andava à procura de figuras paternais (independentemente do género) que me pudessem dar alguma orientação salutar e admiráveis exemplos de conduta. Mas a mediocridade uniformizante e castrante do ensino formal só me fazia arrostar tédio e humilhações; e, quando me sentia minimamente vivo, também alguma indignação. Da longa lista de professores facilmente olvidáveis, nunca ouvi quaisquer palavras de encorajamento para prosseguir pelo caminho que considerava o mais correcto, muito menos me deram indicações nesse sentido. Tampouco algum tentou averiguar quais eram as minhas apetências e talentos, a fim de me ajudar a tentar fazer algo de bom (para mim e para a sociedade) com a matéria prima que me tinha calhado na lotaria dos genes. Só conta a obediências às hierarquias e a competição entre os putos tratados como gado.
Por então a maioria dos licenciados abraçava a profissão de professor, não por vocação ou competência, mas apenas porque era a maneira mais fácil de conseguir um emprego seguro, aceitavelmente remunerado e com períodos de férias maiores do que oferecem as empresas privadas. Ademais, como desde tenra idade que estavam metidos no ensino formal, a maioria dos docentes teme não saber o que fazer fora da redoma académica. Actualmente, devido às imposições corporativas baseadas em medidas macroeconómicas neoliberais, essas benesses para muitos empregados da função pública deixaram de existir, o que, certamente, não se traduzirá no aumento da qualidade do ensino.
Voltando à estória inicail, no começo do último período a professora (de matemática) foi substituída, e a nova mulherzinha quis obrigar-me a ficar sentado, quieto e calado durante todo tempo destinado aos testes. Entrou a matar, assemelhando-se àqueles cães minúsculos e hiper irritantes que necessitam de fazer muito barulho para se afirmarem. Resolvi jogar com a sua insegurança…
Fingi estar a desenhá-la na folha de teste, enquanto me ria com um ar bem sacaninha. Ela logo ficou incomodada ao ponto de, passados uns 10 ou 15 minutos, ter revogado a sua decisão (proferida como se fosse um sargento-chichiuaua ), pedindo para que eu lhe entregasse o teste e saísse. Era mais fraquinha do que eu inicialmente avaliara. Assim, sentindo-me na mó de cima em relação à força opressora, percebi que o melhor seria levar a brincadeira até ao fim. Retorqui-lhe que ainda tinha muito para trabalhar na folha de teste. E comecei mesmo a desenhar o seu focinho antipático e arrogante – só que com a cabeça decepada num charco de sangue e muitas ratazanas a de volta dela num festim macabro… e entreguei-lhe a obra contestatária.
No dia seguinte fui chamado ao conselho directivo (onde, aliás, me tornaria cliente habitual daí a 2 anos…). A directora viu à sua frente um garoto franzino (com a aparência de uns 11 anos), bastante andrógino e obviamente deslocado, mas, apesar de, como sempre, me ter subestimado, também percebeu algum talento revolucionário. Senti-me intimidado pela sua severa tranquilidade, típica dos que sabem que os miúdos à sua guarda estão nessa situação contrariados, mas desconhecem as (escassas e bloqueadas) vias alternativas para poderem medrar e realizar-se fora da instituição destinada principalmente a adestrá-los na obediência servil e bajuladora, bem como na competição injusta e desapiedada pela definição e consolidação de hierarquias no frenesim alimentar ( que em biologia tem a designação de Pecking order), tendo o capital como deus e, consequentemente, o capitalismo como religião – atitude que é indispensável à Megamáquina para lhes consumir as vidas através do trabalho forçado.
Sem conseguir disfarçar uma expressão divertida, de sobrolho franzido, a directora disse-me que eu não deveria ter feito aquilo, mas que também não era justo a professora ter-me dado apenas o costumeiro «0» no teste alvo de polémica, porque a qualidade do desenho merecia mais uns valorzitos (sic)… em breve viria a arrepender-se de me ter dado essa abébia, pois
tal serviu-me de inspiração para testar os limites da sua tolerância, acabando por ir longe demais com a brincadeira.
Na semana seguinte, estava eu sentado sob uma das carteiras lá do fundo (as que, logo na primeira aula, qualquer professor sabe que são ocupadas pelos cábulas…) a mamar cerveja* em lata e a desenhar (com giz) no soalho a caricatura da tal professora com um corpo de vaca. Desta feita deram-me cá um responso! (Só me arrependo do trabalho que dei às senhoras da limpeza.) Ora gaita !, foi a única altura da minha vida que eu achei alguma utilidade ao meu talento para o desenho. Tive que adoptar outras tácticas de guerrilha – pois não restam dúvidas que me tinham empurrado para um ambiente de guerra que consumiu o que restava de melhor em mim, até me tornar num espectro abúlico e de olhar distante – mas nunca uma mascote pela trela ou um autómato pronto para o desumanizante mercado de trabalho e para o consumismo acéfalo como eles queriam!
O meu processo de recuperação intelectual e espiritual demorou alguns anos e só pôde iniciar-se quando deixei o ensino formal. Tive que (re?)aprender tanto a ser útil aos meus ideais como a gargalhar com prazer (sozinho ou entre amigos), consciente desse privilégio mas com a tranquilidade de quem sabe apreciar esses momentos confiante de que se sucederão sem ser à custa da desgraça de terceiros nem da sanidade do planeta.
* Desde os 19 anos que não toco numa gota de álcool. Essa decisão radical foi tomada cerca de 2 anos após me ter tornado vegetariano.
Xando
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