terça-feira, setembro 22, 2009


Ginseng

Os anjos que nos cercam,
envoltos na sua misteriosa inexistência,
cantam, por turnos,
uma melopeia deflagrada.
E por entre os anjos vamos ver
funerais de moscas,
longos cortejos de desempregados,
motoqueiros passeando as motos ao domingo,
pra desenferrujar,
manequins desgrenhadas e de ar mauzão
avançando inelutáveis sobre a passarela,
grupos de políticos pedindo esmola
aos eleitores, que desgraçadamente
lhes dão qualquer coisinha,
enxames de banqueiros, desorbitados,
a bater em latas e aos berros,
suicidas já muito inclinados para fora,
carreiras de tiro repletas,
em pleno treino,
filas de carros a perder de vista,
um longo rasto de molho de tomate,
duas muralhas de cães virados para a frente,
ladrando em alta fidelidade, ininterruptos,
matilhas de caçadores aos tiros,
de olho turvo e ranho no nariz,
e depois mais banqueiros, estes semi-cegos,
tropeçando uns nos outros,
multidões de gentes pluralistas,
poluindo activamente o céu e a terra,
meia dúzia de gatos miando à lua cheia,
absortos,
rebanhos de meninos preparados pelos pais
para serem óptimos desastres,
grandes gotas de ketchup caindo com fragor
sobre uma tela branca, incandescente,
do tamanho
de dez campos de futebol,
e depois uma interminável série desses estádios
voando sempre em frente,
no seu jeito alucinado e verde,
e mais moscas, muitas, muitas,
e renques de advogados colados uns aos outros
em cima de tapetes voadores,
vendo-se por debaixo que os tapetes
são imensas notas de quinhentos
estendidas como mãos,
e gestores aos milhares,
enfunados, de patins,
e uma esticada caravana de peregrinos de Fátima,
de calções,
amplos milhares de informáticos de terceira geração
a penetrar na extensiva dimensão inútil,
perseguidos por um escol de informáticos
de quarta e quinta geração,
e médicos em grande quantidade,
de bata branca e bisturi nas unhas,
dando patadas nos doentes a mais,
e, sobretudo, um número incontável
de sobretudos com defeito,
muito erectos e suspensos,
debaixo dos quais se vêem, cintilantes,
os anúncios à nova democracia,
à democracia para todos,
à democracia de mercado, à democracia
verdadeira, à única e real democracia,
e por fim, lá mais em abaixo,
um imenso e melodramático rali de automóveis,
arrastado a toda a brida
por um excelente conjunto de barris de pólvora
- sobre rodas
e com a mecha já acesa.

Júlio Henriques

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