sexta-feira, outubro 12, 2007

Uma estorinha “infantil”

Acabei de regressar de uma quinta pertença de uns novos amigos, onde existe uma gata que me lembrou outra que conheci há cerca de uma década. Era uma gata muito especial que se chamava Sue.

Ela estava aos cuidados de uns amigos (na altura ainda os considerava assim) alemães que vivem numa quinta lindíssima junto à barragem de (…).
Eles vivem do turismo equestre e do trabalho voluntário. Têm muitos cavalos que vivem à solta. Os seus favoritos são os árabes de linhagem egípcia e são bastante snobs nesse aspecto (para além de acharem que os portugueses emanam dos cus uns eflúvios venenosos que lhes dão cabo dos cavalinhos de competição, só aceitando que boches e outros cámones os montem; curiosamente já não são tão esquisitos na hora de deixar que os "serviçais" lusitanos cuidem dos seus cavalos à borla…). Muitos outros animais domésticos deambulam pela quinta. A saber: galinhas, gansos, ovelhas, pavões, cães e gatos. Andam todos à vontade e são muito saudáveis. Entre os gatos, a “princesinha” era a siamesa Sue. Por alguma razão, cresceu pouco, mantendo um aspecto infantil mesmo em adulta.
Eu não ligo puto às "raças", mas sei que os siameses são gatos especiais; comportam-se como aristocratas, dando pouca confiança aos outros gatos rafeiros, preferindo ligar-se mais às pessoas. Assim era a Sue. Ela tinha também um amor incomensurável pela vida. E parecia impávida. Por ex., na hora de dar comer aos cavalos (ao fim da tarde) instalava-se uma confusão algo violenta, em que eram reforçadas as hierarquias. São rituais cheios de atritos que se tornam um pouco perigo até para as pessoas que os conheciam bem estarem ao pé deles. Pois bem, por entre aquela floresta de patas gigantescas e de cascos potencialmente mortíferos que provocavam pequenos tremores de terra, a Sue costumava avançar tranquila, chegando até a saltar para a garupa de algum cavalo só para ver melhor o mundo lá de cima, pelo que de seguida seguia o seu caminho em paz.
Por aquela quinta (que mais parece uma embaixada da bochelândia…) passam dezenas de caras novas todos os anos. Eu ficava lá umas semanas (até 3 meses) anualmente repartidas. A Sue, que não costumava dar confiança aos que não eram mesmo da casa, simpatizara comigo. (E eu com ela, pois claro.)
Afastados da manada principal (constituída por uns 13 cavalos) estavam 2 garanhões jovens e muito fogosos. Quando lhes dávamos de comer, aproveitávamos para lhes fazer um pouco de volteio até que aceitassem ser montados. A Sue costumava acompanhar-me/nos nessa tarefa diária (apesar dos animais em causa se encontrarem a uns 150 - 200 metros da casa). Um dia, estando eu com os donos da quinta, enquanto os garanhões comiam aveia num pneu de tractor cortado pela metade, a Sue aproximou-se do focinho do cavalo maior (o único que até hoje me deu um coice, parvalhão!) a fim de cheirar o que ele estava a comer com tanto entusiasmo. O FDP do cavalo agarrou-a (com a boca) pelas costas, levantou a cabeça bem alto, deu uma forte sacudida – que partiu a espinha da gata (ouvi bem esse som terrível) – e atirou-a para longe, voltando aos prazeres pantagruélicos com a maior descontracção (era um adolescente parvo e demasiado mimado que estava habituado a que os donos se rissem das suas diabruras – mas apenas quando as vítimas eram portugueses…).
Corremos para avaliar o estado clínico da gata e tentar oferecer-lhe algum auxílio. Ao vê-la, nenhum optimismo sobressaiu. Carreguei-a até casa onde havia uma farmácia bastante completa de produtos essencialmente homeopáticos para fins veterinários. Demos-lhe logo uma injecção para as dores. Eles aplicaram-lhe mais uma coisas (que, na altura, me pareceram meras mariquices), mas era nítido que a gata sofria atrozmente. Tínhamos que decidir o que fazer – a eutanásia era, a meu ver, o procedimento mais evidente e clemente. Telefonámos para um veterinário de confiança que disse o mesmo. O dono da quinta (chama-se S…) discordava, invocando um monte de filosofias da treta algo esotéricas e a especulativa convicção de que se fosse possível perguntar à gata se queria viver, ela diria que sim – mesmo que isso significasse ficar paralítica. No meio da discussão aflitiva, a Sue atirou-se ao chão (estava deitada num banco acolchoado) e arrastou-se para fora da cozinha. O S… seguiu-a e contactou que a gata foi-se aninhar num tufo de gramíneas que tinham a cor predominante da sua pelagem. Eu olhei-a nos olhos e vi que ela estava preparada para morrer. (Existe uma elevada dignidade estóica nesse estado de resignação que já vi em muitos animais à beira da morte.) Foi essa a opinião que expressei quando a levámos de volta para casa. O S… impôs a sua autoridade e injectaram no bicho mais uns remédios.
Eu tinha que me rir embora nessa noite. Estive fora quase 5 meses, mas mantinha-me em contacto telefónico. Foi assim que soube que a Sue tinha superado o que parecia impossível, tendo a sua medula espinal voltado a colar; não apenas tornara a andar, como acabara de ser mãe! Nunca me senti tão satisfeito por ter errado na minha avaliação clínica (mas convém recordar que esta foi uma tremenda excepção, até porque tenho muita experiência de trabalho em centros de recuperação de animais selvagens e toda a vida cuidei de bicharada, fazendo tudo para os manter saudáveis).
Pouco depois voltei à quinta. Encontrei o S… perto da casa principal e comecei a perguntar-lhe por todos os habituais habitantes da quinta, e, como conhecia quase todos os bichos pelo nome, aquilo demorou um pouco. Quando cheguei à vez da Sue (cujo estado eu nunca deixara de acompanhar à distância), de forma hollywoodescamente providencial, ela, vinda do mato, surgiu a correr (num estilo que lembrava o Chaplin, coitada) e trepou por mim até se aninhar no meu pescoço e começou a esfregar a sua cabecinha querida no meu queixo e a ronronar. Poucas vezes fui tão bem recebido!
O S… reiterou-me que, desde que ela tivera filhos, raramente visitara a casa, preferindo caçar – e sobretudo pescar, algo que tive a oportunidade de testemunhar – para a sua ninhada, e ainda ninguém tinha posto os olhos nos gatinhos, a não ser o S… – e foi ao longe.
Nessa noite eu dormi num dos quartos mais afastados da cozinha (onde se reúne todo o pessoal, e nessa altura aquilo estava enxameado de alemães que não fazem o mínimo esforço para se integrarem na cominudade local do país que lhes serve de anfitrião). Entre as 2 e as 3 da manhã, estava eu ferradinho, senti uma patita a brincar com o meu nariz, abri os olhos e tinha 4 gatinhos muito pequenos, brincalhões e muito giros de cima de mim; num dos extremos da cama, a Sue olhava-me com olhos de mãe babada. Estava ali para me apresentar os filhos. Deixou que eu brincasse com eles durante uns 10 ou 15 minutos, depois chamou-os e partiram noite adentro para o seu esconderijo no mato.
Um par de anos depois, ao telefonar para o S… (ou para a sua companheira) fiquei a saber que algum espingardeiro, para não levar para casa a ingente frustração de não ter conseguido destruir o que há de mais belo num dos seus belicosos passeios pelo campo, decidira abater a tiro a Sue…
PB

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