terça-feira, dezembro 15, 2009
Viagem redentora
Apenas sobreviveram 4 dos 600 homens que integraram a expedição liderada por Pánfilo de Narváez em 1528. Alvar N. Cabeza de Vaca, por ter narrado a sua fabulosa aventura na corte espanhola, chegando mesmo a deixá-la escrita para a posteridade, tornou-se o mais conhecido desses sobreviventes. Este homem tinha 38 anos quando a ambição o levou a desembarcar na Florida. Inspirado pelas descobertas e pelos saques riquíssimos conseguidos pelos seus compatriotas (sob o comando de Cortez), Cabeza de Vaca, que era um veterano de guerra, tendo derramado muito sangue em conflitos na Europa, estava disposto a empilhar tantos cadáveres de indígenas quanto fossem necessários para se apossar das riquezas das míticas cidades douradas do novo continente. Mas, como as “terras selvagens” e os seus povos não queriam ser conquistados, os espanhóis sofreram mais agruras do que podiam suportar. Acima de tudo, a verdadeira riqueza que lá se encontrava só poderia ser descoberta e experimentada se os europeus se abrissem a um processo redentor de metamorfose espiritual-civilizacional, deixando-se possuir pelo Espírito da Terra.
Frederick Turner, no seu livro – fundamental! – intitulado “O Espírito Ocidental Contra a Natureza”, diz-nos que foi isso o que aconteceu ao espanhol Cabeza de Vaca e aos seus três companheiros que conseguiram alcançar a Nova Espanha em 1536, percorrendo, desde 1528, milhares de Kms por territórios aparentemente hostis, que hoje correspondem à Florida, ao Texas e ao México.
Frederick Turner é um excelente escritor assim como um ecofilósofo de primeira. As suas ideias adequam-se de forma perfeita ao que eu gostaria de acreditar. O problema é que, embora infrequente, me tenho deparado com dados palusíveis que contradizem algumas das mais sedutoras ideias defendidas pelo referido autor. Tal faz-me recuar para a barricada do meu cepticismo familiar, reavaliando posições.
Passaram os primeiros 6 anos como escravos entre as tribos que habitavam o litoral da região actualmente conhecida como o Texas, sentindo-se maltratados tanto pelos seus captores (que conheciam bem a crueldade e iniquidade dos espanhóis), como pela natureza que não correspondia às suas noções de paraíso idílico... quando finalmente conseguiram escapar, iniciaram uma saga que, por mais desafios físicos que tenha representado, poderá ter sido fundamentalmente uma viagem de purificação e de crescimento espiritual.
Arrastados por dramáticas contingências, estes europeus não faziam ideia de que estavam prestes a ser protagonistas das mais mirabolantes, irónicas e inspiradoras aventuras do colonialismo genocida perpetrado pelos europeus.
Numa das tribos que os acolheu (ou os escravizou?), foram feitos ajudantes de curandeiros/xamãs, e consta que não se deram nada mal nessas novas tarefas. Ainda não sentiam que tinham descoberto uma insuspeita vocação (ou dom?) e muito menos estavam conscientes da auroral e telúrica epifania que despontava nas suas mentes confusas.
Continuando a fugir em direcção à civilização, a sua fama benfazeja precedia-os e por todo o lado as tribos queriam acolher os curandeiros brancos, coagindo-os a ajudar os desfalecido. Com o tempo, todos eles acabaram por assumir-se como curandeiros (miscigenando o pouco que conheciam entre as religiões dos dois continentes em colisão cultural), tornando-se lendária a sua competência. +++ A seu favor, além de uma estranha sorte, contava ainda um atractivo exótico. Os indígenas ficaram deveras espantados com o aspecto deste europeu assim como dos seus companheiros – incluindo um marroquino de pele escura.
Acrescentavam-lhes uma “aurea sobrenatural”, pois eles agiam de forma de forma oposta ao que era esperado do seu povo e sobretudo dos seus líderes.
Os índios estavam estavam extremamente receptivos a este género de visões.
+++ Actualmente restam poucos xamânes nómadas. Sem recurso à tecnologia, provavelmente os calauaias (que alguns especulam serem herdeiros dos misteriosos saberes místico-medicinais que se desenvolveram em Tihuanaco) são os que percorrem as maiores distâncias por toda a América do Sul.
Tal como o próprio Cabeza de Vaca relatou, a credulidade dos índios transformou a sua rota de fuga num movimento messiânico. Uma multidão seguia-os e a fama dos estrangeiros precedia a sua chegada às povoações indígenas, onde as pessoas lhes entregavam as suas riquezas materiais implorando-lhes por curas milagrosas. Pelo menos inicialmente, os atemorizados e confusos europeus, sabendo-se impotentes para fazer prevalecer a sua vontade pela força das armas, reagiram da outra maneira mais típica da sua cultura: oportunismo e impostura.
Para eles tudo não passava de pantomima fraudolenta, limitando-se a imitar alguns gestos ritualísticos dos curandeiros locais, acrescentando-lhes o sinal da cruz e uma Ave Maria (sic). Cabeza de Vaca assevera ter chegado a emular o maior truque místco (do mito) de Jesus Cristo: “ressuscitou” um índio!
A credulidade espiritual e a auto-sugestão (histérica) dos seus seguidores conduziu a uma tal dependência psicológica que chegou a provocar uma tragédia/catástrofe numa das aldeias em que os anfitriões se mostraram demasiado relutantes (através da súplica pacífica) em os deixar partir. Os estrangeiros perderam a paciência e protestaram irados. Tal atitude – antagónica com a cultura de cordialidade dos índios, sobretudo no que diz respeito aos assuntos do foro sacrossanto - causou um pânico generalisado – ao ponto de muitos índios adecerem, oito dos quais chegaram mesmo a perecer vítimas de distúrbios psicossomáticos. O pior é que esse incidente dramático só fez aumentar a fama dos seus alegados poderes sobrenaturais. E assim prosseguiram a improvável saga, escudados por um temor reverente superior ao que os índios atribuiam aos feiticeiros/curandeiros das suas etnias.
Nao creio que seja uma ingenuidade excessivamente lírica, deduzir que, à medida que aprendiam e adoptavam os costumes dos ameríndios seus anfitriões, descobriram a essência da felicidade que transcende as particularidades/idiossincrasias culturais; o elo espiritual que une todos os homens e estes à natureza que os sustenta. Durante anos cultivaram o prazer de praticar a generosidade abnegada e a pobreza material, indispensáveis à riqueza, ao fortalecimento e à credibilidade espiritual. Sentiram-se agraciados pelas dádivas da natureza; contribuiram para a cura de doentes que neles confiaram inteiramente; apaziguaram disputas e conquistaram a amizade e o respeito daqueles que inicialmente odiavam e temiam (muitos dos quais passaram a ser seus companheiros de viagem).
Regressados à civilização, ninguém queria aceitar que eles se tinham “indianizado” devido ao velho pavor (típico da tradição judaico-cristã) de que civilização é um artifício precário que tende a “degenerar”, assilvestrando. Os seus relatos fantásticos foram distorcidos para alimentar a quimera do ouro americano e os redimidos pareceram esquecer o que aprenderam entre os ameríndios, voltando a contagiar-se com a febre mortal da ganância; pelo menos metade deles voltou a juntar-se a expedições e perderam a vida à procura do ouro na terra onde tinham encontrado o maior dos bens.
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