segunda-feira, dezembro 28, 2009

Em 1560 uma forte epidemia de varíola matou a maioria dos índios que se encontravam nas missões, contribuindo para o desespero desse grupo étnico que contemplava a sua própria extinção. Sendo naturalmente supersticiosos, sem os conhecimentos científicos que nos séc.s XIX e XX se desenvolveram na Europa, tendemos a interpretar as doenças (em especial as que são novidade) como uma intervenção nefasta de entidades e forças sobrenaturais (ex.: demónios), associados a complexos de culpa. Quando essas patologias fatais/letais chegam com os nossos inimigos [humanos], é inevitável pensarmos em guerra biológica (mesmo desconhecendo esse termo moderno). Os padres das missões tampouco conseguiam vencer a varíola, dando prioridade aos baptismos in extremis. Tal prática passou a ser encarada pelos índios como um “golpe de misericórdia”, parte de uma sinistra cabala conduzida pelos europeus para acabar com eles. ( Ronaldo Vainfas, 2006)

Quando se torna dominante uma nova ameaça que pretende extinguir um estilo de vida tradicional e todo o seu sentido, o conseqüente sentimento de impotência extrema perante um inimigo aparentemente invencível pelos meios convencionais de resistência, geralmente procura-se o consolo e escapatória (alienação?) espiritual na religião. Neste situação crítica, os cultos emergentes tendem a nutrir-se da ufania nostálgica por um passado cheio de glórias cujo reflexo no presente vai ficando cada vez mais embaçado, tornando-se até alvo de desrespeito pelo jovens apenas familiarizados com uma realidade demasiado penosa. A busca pela reestruturação e renovação social tende a apelar aos poderes sobrenaturais, adaptando e canibalizando novos elementos até da cultura alóctone que os oprime.


No séc. XVI um movimento messiânico de características milenaristas surgiu entre os índios tupi na Bahia. Radialmente, começou a espalhar-se pelo litoral (e teve o seu auge em 1585). Os seus líderes eram pajés (pajés-açu) dos mais conceituados entre a sua etnia, pois, para além de curandeiros e guardiões da sua cultura, acreditava-se que tinham o poder de comunicar directamente com o espírito dos mortos, convocando-os para os seus objectivos – que não eram modestos: recuperariam o mitológico paraíso tupi, a “terra sem males”, onde seria invertido o jugo colonialista: massacre dos escravocratas e tornar servos dos índios os restantes estrangeiros. Havia também castigos terríveis para os índios colaboracionistas ou simplesmente resignados à exploração de que eram vítimas.
Estas profecias foram apelativas até para os escravos negros, alguns dos quais aderiram ao novo culto que tinha matizes sincréticas. E isto porque os seus líderes tinham sido criados em missões. O principal deles fora rebaptizado como António, mas dizia ser a reencarnação de Tamandaré (o mito primordial dos tupinambás, cujo nome significa “o salvo das águas”, o que poderá leva a extrapolações geminadas com o mito judaico-cristão de Moisés), para além de se autoproclamar Papa. (Não seria certamente pela sua modéstia que mais impressionava os seus seguidores.) Como se isso fosse pouco, a sua mulher (muito activa no culto Tupanasu) denominava-se Santa Maria Mãe de Deus. Não é, pois, de admirar, que as rebeliões indígenas desse cariz fossem chamadas de “santidades”.
A Igreja e a Coroa portuguesa não podiam tolerar tamanha heresia que ameaçava a ordem estabelecida de acordo com os interesses dos europeus, até porque esta seita incentivava os escravos indígenas a se rebelarem, fugindo dos seus opressores brancos, ou mesmo atacando-os fisicamente.

Consta que os tupis e os guaranis há muito que acalentavam um mito edénico, a que chamavam y vy mara ey / I Vi Mara Ei (ou seja, “Terra Sem Males”). Tal como outros mitos deste género encontrado na generalidade das culturas humanas, a terra prometida era idealizada em pressupostos sobrenaturais e até pleonasticamente contra natura; obviamente que não no sentido de agressão irresponsável à natureza silvestre, mas pela materialização dos anseios humanos por vencer as regras que a natureza nos impõe e que caracteriza a nossa humanidade.
Trata-se da nostalgia de uma perfeição quimérica extrapolada para uma utopia biorregional; um estado espírito que se quer ver refletido no horizonte geográfico.
A maioria de nós deseja ver-se livre da decadência física, da doença, da dor; da escassez de alimentos e outras privações físicas; e da maior e mais velha das angústias: a morte. Focando para além do nosso umbigo, na esfera social, seria óptimo a erradicação dos conflitos; a conquista da serenidade budista, livre de desejos irrealizados, bem como a harmonia total com um ambiente cornucopiano.

Tudo isto providenciado por um deus particular, o criador do mundo, que para estes povos seria Nhanderuvussu, operando milagres a partir da sua oca mágica situada no centro do paraíso.
Ironicamente, enquanto muitos europeus recém chegados à América do Sul ali queriam ver a materialização do seu paraíso bíblico,(começando por Colombo) , os tupis e guaranis geralmente procuravam o seu paraíso para Oriente, algures onde o sol “se levanta”, talvez do outro lado do oceano. Segundo o Prof. Hernani Donato, os índios tupi, aproximadamente a cada 25 anos, faziam migrações em massa (podiam chegar aos milhares de peregrinos) em busca do referido paraíso. Num árduo e perigoso périplo, cujo destino geográfico era a meta que desvalorizava as adversidades físicas e as contingências temporais.
A última vez que tal aconteceu foi no final do séc. XIX, e só terminou em 1912. Das centenas de índios que iniciaram essa migração , poucas dezenas deram-na por término, quando o etnólogo Curt Nimuendaju os ajudou a estabelecerem um assentamento onde hoje é a reserva Araribá.
A maior dessas migrações registadas pelos europeus, aconteceu em 1549. Desta feita, uns 14 mil tupis fizeram uma rota inversa. Partindo do litoral brasileiro, rumaram até aos Andes peruanos, onde alguns antropólogos situam a sua proveniência étnica. Quase inevitavelmente, foram desafortunados: apenas 3 centenas deles alcançaram Chachapoya, onde terminou a saga dramática, já que foram postos na ferros pelos espanhóis que os consideraram espiões dos portugueses.

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