terça-feira, dezembro 15, 2009



É um erro revisionista grosseiro tentar ver o padre António Vieira (1608-1697) como um defensor dos oprimidos, segundo os actuais padrões morais e político-filosóficos. Entre o padre Vieira e Dom Pedro Casaldáliga há um fosso ideológico profundo que só poderá ser preenchido pelo zietgeist (espírito da época).
Vieira tinha consciência do inferno quotidiano que arrostavam os escravos [no Brasil]. Tal certamente que chocava a sua sensibilidade – que não era, em absoluto, igualitária. Incapaz de pensar fora da cartilha jesuíta, ele acreditava que os escravos eram seres inferiores que necessitavam da “salvação” espiritual oferecida pela Igreja, pois eram oriundos de uma “terra de danação” (sic); ou seja, onde predominava o paganismo animista.
Se Vieira pretendia agitar consciências entre a elite escravocrata, junto das suas principais vítimas a intenção era contrária; deveria incutir-lhes uma atitude de mansa resignação. No seu “Sermão Décimo Quarto” (de 1653), Vieira, dirigindo-se a escravos de um engenho baiano, assevera que inveja a triste condição deles – equiparável ao sofrimento de Cristo entre os homens – já que tal lhes “garantiria” um cantinho no reino dos céus. A seu ver, tudo o que penassem à sombra da cruz seria melhor do que terem continuado em áfrica, dominada por “demónios e vícios abominantes”.
Na verdade, ele pouco se preocupou com a escravidão dos negros, que era uma prática com tradição mesmo em Portugal. Até no Brasil era normal os clérigos possuírem escravos maioritariamente oriundos de África. (É curioso que, devido a alguns atritos que Vieira teve com a Inquisição, esta última, esmiuçando o passado do polémico padre à procura de podres incriminantes, foi incapaz de determinar se no seu sangue corriam genes negros ou ameríndios; só sabiam que estava “contaminado” com uma dessas “raças inferiores”. )
Vieira chegou mesmo a sugerir a intensificação do contingente de escravos negros e a sua relocação para o norte, a fim de que os fazendeiros pudessem prescindir da mão-de-obra indígena.
Embora mais notória e alvo de algumas aclamações ingênuas, a defesa de Vieira em nome dos índios seguia a mesma tortuosa linha argumentativa. No que concerne ao modo como os fazendeiros maltratavam os seus escravos, o que mais afligia Vieira era o facto de esses ricos colonos descuravam as suas obrigações evangélicas na doutrinação dos índios; matando-os de trabalho, não sobrava nem tempo nem disposição para a “palavra do Senhor”. Vieira queria os índios ordeiros e leais, súbditos tanto do Rei de Portugal como de Cristo. (Recorde-se que vez alguma a bíblia condena a escravatura; Cristo até sugeriu que essa prática iria continuar no seu reino de mil anos, após o Armagedão...) Assim, se a “salvação” dos índios passava por retirá-los da tirania dos fazendeiros, seria somente para os colocar em missões sob a custódia da Companhia de Jesus, onde eram catequizados e convertidos em trabalhadores obedientes e orgulhosos da sua nova condição europeizada. Mas essas missões sofriam ataques freqüentes de milícias caucasianas – que ele descreveu como perpetradores de um genocídio indígena! Vieira admirava as qualidades guerreiras dos índios. Por isso, visionava para eles outra utilidade: deveriam fundar um exército, à laia de cruzados, para defender, com sangue derramado, os interesses da sua ordem religiosa. A idéia de que os índios tinham o direito de continuar a viver do seu modo tradicional, tal como o tinham feito por milhares de anos antes da chegada de Colombo ao Novo Mundo, estava fora de cogitação para o padre Vieira.
Este homem sempre namorou o poder mundano das régias esferas políticas, influenciando directamente governantes. Era ainda um mestre da oratória e um exímio artífice das letras. Se houve uma causa que ele abraçou energicamente foi a de tentar impedir a deportação e expropriação dos judeus em Portugal (embora os quisesse ver convertidos ao cristianismo), pois ele acreditava que eram indispensáveis investidores na construção de um império ultramarino; chegando a profetizar a ascensão de uma monarquia universal liderada por um príncipe português.

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