No início dos anos 90 esforçava-me por passar pelo menos um mês por ano a
fazer trabalho voluntário no Tejo Internacional (que na altura ainda não
tinha o estatuto de Parque Natural). Decorrente da minha tarefa de vigilância,
certa feita dei por mim a espiar, clandestinamente, a preparação de uma batida de caça numa
herdade dedicada ao turismo cinegético. Estávamos em plena época de
nidificação e, mesmo onde havia uma colónia de grifos e um ninho de
cegonhas-negras muito acessível, uma horda de caçadores, apoiados por mais de 400 cães (muitos deles extraviar-se-iam, tornando-se assilvestrados e atacando os rebanhos de ovelhas da região), estavam prestes a esquadrinhar as
declivosas margens do Tejo, disparando a quase tudo o que se mexesse. Como as consequências previam-se fatídicas, apressei-me a dar ocorrência do que
tinha visto a um dirigente de uma ONGA muito ligada àquela área de grande
riqueza natural. Sem fazer muito caso do meu tom alarmado, com uma frieza
contabilista que me indignou, respondeu-me que o melhor seria não intervirmos de forma preventiva, deixando o desastre acontecer e levando lá algum jornalista para o registar. Tentou dar-me uma lição de estratégia,
argumentando que o sacrifício de umas poucas crias de aves ameaçadas poderia reverter a favor de todas as outras criaturas silvestres que queríamos
proteger, se fossemos eficientes em denunciar o caso e provocar alguma celeuma mediática. Vi naquela atitude as origens da desconfiança popular em
relação aos médicos, dizendo que estes vivem da doença, não da saúde...
Não foi por causa deste desentendimento (pacífico) que o deixei de considerar
como uma pessoa respeitável e um membro valioso na nossa ONGA, mas naquele momento compreendi o quão perigos é os técnicos do ambiente raramente saírem das suas secretárias, fechados em gabinetes com ar condicionado em cidades poluídas, e passando o dia a traduzirem a natureza por números.
Provavelmente este homem que me desapontara nunca saboreou os prazeres impagáveis de nadar num rio limpo junto de onde mora, bem como de
dormir sestas à sombra de árvores, embalado pelo coaxar das rãs; nem quando
era catraio se aventurou a roubar fruta e a espreitar ninhos. Por isso, não
acredito que saiba verdadeiramente o que custa a perda desses privilégios.
Mesmo que não fossem demasiado incertos os vaticinados benefícios, a longo
prazo, decorrentes de deixarmos, impassíveis, martirizar alguns animais que
corriam riscos de extinção, eu não poderia compactuar/concordar com o seu
plano porque, vivendo no campo e estando familiarizado com o terreno em causa, nos dois anos que precederam este episódio tinha acompanhado a nidificação daquele casal de cegonhas negras, e emocionara-me com cada momento em que os
pude observar (bem escondido e de uma longa distância), ao ponto de já as
considerar como minhas amigas e professoras de etologia. Assim, nunca poderia vê-las apenas como números ou como peões num estranho xadrez .
Quando o naturalista, poeta, ensaísta, escritor, jornalista, educador
ambiental,personalidade televisiva ligada à divulgação do património
natural e agricultor biológico, Joaquín Araújo, escrevia regularmente para a
revista espanhola "Integral",
numa crónica especialmente comovente contou sobre um costume seu de incitar alguns amigos que o visitavam na sua quinta a procurarem a árvore que mais os atraísse. Uma vez escolhida, atribuíam-he o nome da pessoa que a elegera. Uma das árvores que mais o cativara (tendo, inclusive, escrito muitos textos belíssimos à sombra da sua copa) era uma azinheira homónima da sua sobrinha. Mas a ligação entre elas duas tornou-se mais profunda do que a
fonética/nomenclatura e até que os sentimentos efémeros, (re)unindo dois
reinos que a ciência separou; duas entidades orgânicas e energéticas que as
religiões ocidentais não admitem familiaridades. É que a menina tivera uma
morte prematura, e as suas cinzas foram depositadas junto das raízes da sua árvore favorita - que continuou a dar amparo aos familiares que, com a chama do amor, continuam a manter viva a memória da criança. Joaquín Araújo termina essa crónica indagando-se sobre a razão de, ao invés de as nossas cinzas se tornarem árvores com nome, insistirmos em transformar as florestas em cinzas anónimas...
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