Mais um poema candidato a “clássico” da poesia libertária/revolucionária/ecologista/luddita/ateia/iconoclasta..... A porra é que, se alguém se molestar em o ler (o que é duvidoso), o mais provável que não o entenda, podendo até acusar-me de ser mais hermético, obscuro e pedante do que Heráclito (de Éfeso). Por outro lado, parece-me um mau gosto algo castrante (com respeito à interpretação criativa e idiossincrática dos leitores) encher poemas de asteriscos e notas de rodapé.
Apesar de ser quase certo que ele vai achar este poema uma merda, quero dedicá-lo ao Júlio Henriques – a pessoa mais inteligente, culta, literata, idealista, generosa, cordial, gentil e leal [de] que eu já tive o privilégio de ser amigo. Bem haja!
Excursão de vegetarianos ao matadouro
Na submissão, as fomes expandem-se
Pelos territórios consagrados ao amor.
Por falta de apelos de outras bocas,
Os lábios recolhem-se para o interior das suas cavernas
(E o amor não correspondido é um desperdício?)
Na charada insolvível do infinito
(que aborrece a primeva angústia de morte),
Truques de logomaquia conjurando as trevas
Que nos suga para o passado mais recenado,
Na contagiante vilania do exército de cegos
Que carrega o andor do deus otiosus
- divertindo-se com as nossas desgraças...
Escravos dos escravos mecânicos,
Marcham rumo ao final sem juízo.
Achando que assim cantam melhor,
Há quem fure os olhos aos canários...
Ergue a cabeça! Até os olhos enfrentarem o céu,
Com destemor de chorar pelo leite derramado
Sobre a espinha dorsal da noite.
De lá não vêm juízos nem punições;
Tampouco revelações da Alethéia.
Com os pés na Terra, imuniza-te
Contra o sobrenatural
E contra o desespero
Da orfandade cósmica.
O reflexo míope das estrelas
Nas águas que me serviram de berço.
Como o sulco dos passos erráticos numa jaula,
Erodiram-se as margens do rio que seria a minha fuga.
- Mas não me deixarei escoar pelo ralo do matadouro!
Por aí foi esvaziada a espiritualidade
Dos vossos ritos que oprimem
Por não passarem de propaganda política
Pretendendo justificar assimetrias sociais.
Que notícias chegam da finisterra?
Não me falem de crendice supersticiosa;
Sou crescidinho e livre para saber o essencial!
A bíblia nem para limpar o cu serve!
O mesmo vale os outros textos “sagrados”
Que exigem leituras de joelhos.
Até a “teologia da libertação” é um paradoxo.
Chamemos à pedra os patriarcas e os profetas.
Os mortos ainda cagam demasiadas sentenças.
A epistemologia jogada pela janela,
Enquanto forjam contextos históricos
Para os mitos que nos apascentam
- que história mal contada!
A Cartilha que nos impõem
O que esconde essa preocupação pelas fachadas?!...
Refugiados dos cultos que nos furtaram a pureza,
Negando-nos até a animalidade e a racionalidade
- O que faz de nós humanos.
As árvores cansadas de sonhar,
Arreiam as suas nemorosas almas
Com as entranhas espalhadas ao sol
(que presságios lês nelas?...)
- Eu saúdo essas velhas amigas.
Desejo que os meus ideais se traduzam em paz.
Embalar-te-ia com as suas melodias
(marca o ritmo o coração do teu filho por nascer)
Poderiam silenciar a indignação que destila revoltas?
Dialoga com a dor e vê
A vida que se precipita
Pela ferida na árvore
Que o raio visitou.
Não é um sumidouro de demónios
(excepto para os que cultivam o ódio...)
As memórias da selva esfumam-se...
Para a Terra, maior tormento que a seca é a cerca...
A inocência do verde range na queda,
Como a apostasia de Caburé
(dos Tentera)
- O sangue corre em epidemia
Como o cimento e o alcatrão que nos cobre.
O derradeiro projecto de domesticação:
Quando o sobrepovoado casa com o desumanizado
Festeja-se cada chegada dos petroleiros aos portos
Seguros de que as marés negras ascenderão ao céu.
As belugas são manejadas como lixo tóxico
E as mamas das nossas mães são agora tubos de escape
- já não sei o que dar de comer às crianças!
A cinza do mundo transformado pelas fábricas;
Nos seus subprodutos os pintores vasculham novas cores,
A fim de nos deslumbrarem com naturezas mortas.
As metástases no meu cérebro, na minha vida,
São a hidra industrial que nem João de Patmos imaginou.
O alento do capital no abraço do afogado.
Compramos indulgências à tecnologia,
Cujas soluções sempre se revelam problemas
- Abrindo novos mercados na esteira da destruição
Capital especulativo: economia de casino; império corporativo...
Quem te explora nunca te olhará nos olhos.
O dinheiro é apenas um símbolo de poder
Que despeia a nossa cobiça
E destampa o esgoto seminal;
Apreço pela vida versus a vida a preço
Se classificas como panfletário o meu protesto,
Ficas moralmente escusado de o ouvir?!
Quero descansar naquela praia de sonho ,
Sabendo que apenas Ouroboros lá se bronzeia
(O clichê do sangue nos rastos...)
Os turistas refastelam-se sobre o genocídio dos indígenas;
Pagam para esquecer a escravidão assalariada
- Agora é o tabu da Ágora ;
Nem a ferros o pare a maiêutica!
O tripalium e o Estado não conseguiram extinguir
O encantamento radical que cultivo desde criança.
Assim, não errarei os meus caminhos
Rumo ao nada...onde tudo deságua
A fim de consumar a comunhão com o cosmos.
- Que não tem planos especiais para nós,
Assim como não os tem a evolução
Na terrivelmente maravilhosa aventura da VIDA
O Gênesis constrói-se com a teoria das catástrofes.
Big Bang, a última parada
Para o expresso do da ciência
- Apresse-se a reservar um leito de prostituta
Inaugurado no estupro da natureza!...
Os deuses apeiam-se na dúvida
De quem os criou
A credulidade dá-lhes poder
Dispenso tal companhia
(até dos que fazem das árvores morada
- E não existem templos mais sagrados!)
A casa das musas está silenciosa;
Amontoa-se poeira sobre os espólios;
Arrependimentos da guerra contra Gaia.
Só restam cadáveres impedidos de apodrecer
E pedras que ainda encantam,
Mesmo já não sendo porta-jóias
Das fontes de calor e do orvalho.
O mundo virtual em breve nos formatará...
A sofisticação é o que nos torna artificiais.
Da caravela ao foguetão, aplaude até Gedeão.
As consciência suprimidas pela doutrina
Que cria mercenários de bata e de gravata.
Vê-os mercadejar a nossa sobrevivência;
Brincando aos aprendizes de feiticeiro,
Rearranjam o abecedário dos genes
E falsificam as suas chaves-mestra.
O deus ex-machina dorme num cofre de banco...
Não te ajudarei a procurar o telecomando da telomerase.
Acho que a imortalidade atenta contra a qualidade.
Vai emular o fungo da levedura,
Que eu encontrarei uma mulher receptiva
Menestréis vagam pelas estradas
Cantando o medo dos que os condenam
- alguns têm visões de psicopompos ao crepúsculo
Aquele vagabundo baptizou as mãos numa cloaca.
Ele as chamou de resistência e de resiliência
Uma comeu-a um cão da polícia;
Com a outra aprendeu a escrever versos de amor.
(Com qual delas esmolava?
Com qual delas se masturbava?...)
O fantasma da culpa não se expia
Nos ciclos de vingança dos sectários
- Que desistem da vida para celebrar utopias
Onde não se admitem vozes dissidentes.
Os Cérberos que guardam essa “moral divina”
Chegam ao êxtase fantasiando com hereges
Submetidos aos seus julgamentos por ordálio,
Certos de que penarão para todo o sempre
Por serem títeres na peça escrita no trono celeste...
A canção de deus num campo de batalha.
Cada facção delira na supremacia
De serem os maiores inimigos de si mesmos
Moldado pelas preces dos que me precederam,
Prefiro a companhia de Diógenes
(coçando a barriga)
Sabes como poderei encontrar a minha tribo?!
(Ah, sei, preferes vender-me uma boa armadura...)
Já desisti do projecto alternativo de comunidade?
Só (,) procuro um lugar no verde,
Onde não tenha que visitar sepulcros
Dos que me traíram nem daquilo que fui.
A Primavera não tem a nostalgia da perfeição.
Mas não suporta o silêncio nos campos...
- O desafio espiritual é o maior à nossa frente!
XANDO
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