Há mais de 500 anos, Leonardo da Vinci, um dos maiores génios de todos os tempos (e que era também vegetariano), vaticinou que chegaria o dia em que matar um animal (por divertimento) seria considerado tão grave quanto matar uma pessoa. O mestre renascentista, apesar de ser algo misantropo, depositou demasiada fé na evolução da nossa sociedade…
No primeiro domingo de Setembro fui até ao Paul dos Patudos com o intuito de observar como se comportariam os caçadores na abertura da época cinegética. (Na verdade, estes tipos nunca dão tréguas aos animais silvestres, limitando-se a trocar as cana de pesca pelas espingardas. Muitos antes de poderem disparar a tudo o quase mexo no chamado regime desordenado, são ainda sócios de zonas de caça onde caçam o resto do ano.) Ao fim de tantos anos a assistir a matanças gratuitas, penso sempre que já tenho o estômago suficientemente calejado para estas merdas, mas nunca é assim. Invariavelmente, Fico por demais transtornado.
Um grupo de energúmenos limitou-se a esperar junto aos dormitórios das aves aquáticas e dos estorninhos. Os disparos intensificaram-se ao crepúsculo e seguiram noite adentro, quando mal dava para ver sombras no céu, quanto mais para identificar espécies. A matança foi covardemente fácil e estupidamente inútil. Nem sequer têm a menor intenção de ir buscar os corpos das suas vítimas! Cerca de uma dúzia de espingardeiros conseguiram, ininterruptamente, disparar pelo menos 2 centenas de vezes (e, que eu saiba, os cartuchos não são à borla – mas as vidas de espécies que a todos nós pertencem, são…). O massacre é o seu único divertimento. Uns quantos estavam à volta de ETAR (do lado de fora da cerca) disparando para os patos (algumas das espécies são “protegidas” por Lei…) que já estavam pousados ou se preparavam para o fazer. Um monte de cadáveres ficou a boiar literalmente na merda. Suponho que estes filhos da puta se devem sentir orgulhosos destas manifestações de pseudovirilidade, estando-se a cagar para tudo o que seja responsabilidade social e ambiental. Cheguei a falar com um deles quando se preparava para partir ao volante o seu automóvel. Apenas queria saber se ele conhecia as espécies que tinha acabado de matar – para nada! Previsivelmente, o tipo respondeu-me com ameaças de violência física. O costume. Mas deu para notar que, se eu lhe tivesse chegado um fósforo ao pé da boca, o imbecil converter-se-ia num lança-chamas vivo, tal era o evidente estado de alcoolémia!
Há quem enalteça a caça, como um “desporto” que privilegia a convivência masculina (claro que tb existem mulheres espingardeiras, mas por cá geralmente essas são projectos de tias que se limitam a ir às batidas aos javalis e/ou aos veados em herdades de luxo). O que eu por lá vi foi um bando de barrigudos a disparar junto dos carros, confraternizando mais com as cervejas e com os cigarros de que entre os “irmãos de armas”. (Uma das coisa de que eu gostava mais quando vivia na Serra da Lousã, era que raramente se ouvia um tiro. Teoricamente, estava disponível para qualquer caçador lá ir fazer misérias, mas a porra é que a orografia é mesmo íngreme e nos sítios onde existe uma maior riqueza de fauna, não dá para lá ir de carro – nem com um jipe. Assim, estes desportistas –matadores da zona preferiam ir até ao Alentejo dar tiros em perdizes e em coelhos de galinheiro, do que puxar pelas pernas serra acima… Agora que reintroduziram os veados e os corços, a caça passou a ser muito mais elitista por aquelas bandas; qualquer idiota com a carteia bem nutrida e com uma carabina de mira telescópica com infravermelhos pode abatê-los sem mexer outros músculos para além dos indispensáveis para carregar no gatilho.)
Da Direcção Geral das Florestas não vale a pena esperar nada de bom, mas porque raios o SEPNA de Santarém ou de Almeirim nunca vão até ao nosso paul fiscalizar estes - e muitos outros – atentados ambientais?! Será que ainda não perceberam que o paul dos Patudos é a maior e mais ameaçada jóia ambiental desta região? Porque é que sempre que lhes telefono à hora em que são consumadas estas carnificinas (em que se cometem muitas ilegalidades), nunca estão disponíveis?! Como é que é possível que o referido paul se converta num importante (à escala europeia) santuário para a vida selvagem, se basta um punhado de parvalhões para manter os bichos aterrorizados, fugindo para longe? E o que dizer das muitas espécies protegidas que por lá continuam a ser chumbadas?
Durante décadas os caçadores fizeram do paul um acmpo de extermínio sem tréguas. A sociedade, nomeadamente a comunidade local, não pode continuar a permitir esse triste “espectáculo” ! Temos que pressionar as autoridades “competentes” a fim de acabarmos com esta guerra contra a natureza que a todos prejudica (até aos caçadores). E não pensem que eu vou conseguir fazer isso sozinho.
A caça, nas nossas latitudes, tornou-se numa caricatura grotesca e perversa de uma actividade que outrora contribuiu não só para a mera sobrevivência da nossa espécie, mas também para o nosso desenvolvimento físico, intelectual e social.
«O amor inteligente, simultaneamente cordial, ao campo, é um dos mais refinados produtos da civilização e da cultura. Quem verdadeiramente ama a natureza nela não vê peças de caça.» – Miguel Unamuno
«Existe uma diferença fundamental entre animais a preço e apreço pelos animais. O apreço é incompatível com tornar vítimas os objectos queridos.»- Carlos Herrera
Em Portugal os critérios “selectivos” do morticínio gratuito continuam a basear-se, em grande medida, num sobejamente conhecido lema (em jeito de remoque de mau gosto) dos caçadores:” acima de mosquito, abaixo de guarda”… Nada disto deveria surpreender num país que consagra mais direitos de usufruto do território aos caçadores do que aos restantes cidadãos – que são a esmagadora maioria.
demasiados séculos de perseguição implacável (com um notório acréscimo de violência a partir de 1974) fizeram com que os animais que habitam estas paragens estejam sujeitos a um stress elevadíssimo, permanentemente aterrorizados com a nossa presença; a sua sobrevivência depende sobretudo da capacidade de se esquivarem aos humanos (no caso mais agudo dos mamíferos, o sigilo fantasmal que os caracteriza é o seu melhor segurode vida). E não é para menos, só na Península ibérica são chacinados anualmente entre 50 a 90 milhões de animais – um bem comum a todos - para deleite de apenas 2% dos cidadãos! Este holocausto cinegético, nos últimos quatro séculos já levou à extinção 270 espécies de vertebrados! E há ainda que considerar as milhares de mortes obscuras devido ao plumbismo (ou envenenamento causado pelo chumbo).
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