quinta-feira, julho 09, 2009


Continuando com a saga que tenho escrito sobre as principais figuras do Antigo Testamento, agora apresento-vos David & Salomão. Sejam pacientes e embrenhem-se na estória que é bem mais desconcertante e intrigante do que qualquer xaropada de Hollywood ou telenovela mexicana.


David

Representantes das tribos de Benjamim e de Judá elegeram Saul para os liderar na luta contra os invasores Filisteus, que subiam das costas até às montanhas, somando conquistas militares.
Samuel (que presidia uma congregação de profetas) unge o (como não poderia deixar de ser) espadaúdo e belo Saul, simbolizando o início de uma linhagem de reis dos hebreus na terra prometida, em conformidade com a vontade de Jeová.
Mas entre Samuel e o Rei Saul vão-se acumulando quizílias e incompatibilidades político-militares e teológicas. Para piorar a situação de Saul, este apenas dispunha de um pequeno exército de voluntários pouco treinados.
David era então um jovem pastor (o filho mais novo de sete irmãos, seguindo o mesmo ofício do pai)que vivia nos arredores de Hebron.
Os cronistas do Velho Testamento, que deveriam ser versados em marketing político, viveram numa época em que a nação estava dividida e subjugada por potências estrangeiras. Por isso necessitavam de construir personagens inspiradores para o seu povo. David é assim
retratado com todas as sublimes e imaculadas virtudes de alguém abençoado por Jeová e, portanto, destinado à grandeza.
Era ruivo e formoso; parco de palavras, porém moço valente e gentil. A sua destreza com a funda (com a qual enfrentava leões e ursos, a fim de proteger o gado a seu cuidado) equiparava-se ao seu talento musical. (A tradição popular assume que o seu instrumento era a harpa. No grego original, a palavra utilizada é «psalterion» que engloba a generalidade dos instrumentos de corda. Para um pastor serrano, não seria prático carregar uma harpa; quando muito uma pequena lira. Mas este é um pormenor irrelevante.)
Num episódio inverosímil, o exército filisteu (mais forte do que os seus oponentes hebreus) decide jogar o rumo da batalha num combate derradeiro entre os dois campeões de cada lado. David, que nem sequer fazia parte do exército, voluntaria-se e é aceite pelos seus líderes militares para defender a honra dos hebreus enfrentando o gigante Golias que aterrorizava todos os soldados de Jeová. Bastou a David uma pedrada certeira para matar Golias. Inevitavelmente, esse feito granjeou a David uma enorme notoriedade.
David decapitou e exibiu, fanfarrão, a cabeça do seu monstruoso oponente, incitando brados de júbilo belicoso por parte dos seus companheiros de armas. Mais tarde os filisteus fariam o mesmo ao Rei Saul, mas neste caso a bíblia considera tratar-se de uma inaceitável profanação de um cadáver muito especial, sinal claro dos modos bárbaros dos seus inimigos…
O sorumbático Rei Saul é atormentado por um espírito mau como castigo divino. (Neste ponto os escribas “inspirados por deus” cometem o lapso de afirmarem que Jeová se arrependeu de ter feito Saul Rei dos hebreus. Esta é uma confissão de que Jeová é imperfeito, pois errou, o que contradiz a sua suposta omnisciência.)
À revelia de Saul, Samuel decide ungir David como o legítimo líder do “povo de deus”. (Trata-se de uma cerimónia mágica em que o ungido fica possuído por Jeová.)
A pedido de Saul, David é levado para a corte. Aí oferece ao Rei simultaneamente os serviços de musicoterapeuta e de pajem de armas. David integra o exército do Rei e chega a capitão de um regimento. Mas a popularidade do jovem herói incomoda tremendamente Saul, que, enciumado, ordena o assassinato de David. Este consegue escapar aos seus algozes várias vezes (geralmente com ajuda de um filho de Saul chamado Jónatas, cuja amizade mais parece um romance homoerótico…), acabando por fugir para as serras de Judá, onde consegue juntar até 600 salteadores-mercenários sob o seu comando. Não combatiam por motivos religiosos, apenas desejavam saquear e dominar pelo terror um vasto território. tais facínoras não poupavam viv’alma em cada ataque às povoações. A única desculpa que a bíblia apresenta para estas barbaridades é que "era esse o costume naquele tempo"(sic).
Foi quando entraram em contacto com Nabal, um rico proprietário de gado e líder do maior clã do sul, que procurou manter David afastado do seu arraial. “Jeová” logo providenciou a sua morte, permitindo a David apoderar-se da sua riqueza (material) bem como da esposa (Abigail) e das filhas de Nabal.
Sendo extremamente ambicioso, quando a força bruta não funcionava, recorria a pouco escrupulosas alianças político-militares – que geralmente acabavam com uma traição cometida por aquele que viria a servir de medida de comparação ao próprio Jesus Cristo… Assim, chegou ao cúmulo de se unir aos filisteus (por então os maiores inimigos dos judeus) para lutar contra os seus irmãos de etnia e religião! Mas a maioria dos príncipes filisteus desconfiavam demasiado dele.

Ao rei filisteu Aquis (que governava o reino de Gath) David jurou lealdade na luta contra os judeus. Ao invés, David e o seu exército latrocída passaram a atacar povoações periféricas de filisteus e de nómadas. Para que essa traição aos seus novos aliados/anfitriões não fosse denunciada, David, nos seus ataques, assegurava-se de não deixar sobreviventes. Quando Aquis o questionava sobre as riquezas que acumulava, David retorquia que provinham de saques aos súbditos de Saul em Judá, assim como dos jerameleus e dos queneus.

David recebeu o governo da cidade (filisteia) de Siclag, que se tornou a base para as suas expedições de pilhagem e massacres gratuitos infligidos aos povos vizinhos. (I Samuel 27)
16 meses viveu David entre os filisteus, até que decidiu tornar público, e de forma inequívoca, a sua traição a quem lhe tinha oferecido exílio e outros grandes privilégios. (O seu guarda costas mais leal continuou a ser um filisteu.)

Saul “suicida-se” e 3 dos seus filhos são mortos em batalha contra os filisteus (no Monte Gilboa). A narrativa da morte do Rei judeus (às mãos de um amalecita) que nos é impingida pelo Velho Testamento é pouco credível para as mentes inteligentes, dando um ênfase muito suspeito à presumível inocência de David, tal como acontece a outros homicídios traiçoeiros que o envolvem (ex.: o filho de Saul que o sucedeu no trono por 2 anos, bem como o principal general deste último).
A desgraça de Saul é interpretada com sendo consequência da sua desobediência às leis de Jeová, tendo-lhe sido retirada a protecção divina. Esse Rei deixou de ser visto com um libertador dos opressores filisteus.
De regresso a Judá, David aproveita para trucidar e saquear os amalecitas, o que lhe rendeu um bom pecúlio em ouro, escravos e um incremento de popularidade junto dos judeus. Ao se ver no meio de muitas contendas políticas de cariz tribal, com a sua riqueza, David apostou na compra de votos para construir a sua base de apoio à campanha que o levaria ao trono.
Abreviando a estória, David (aos 30 anos) usurpa o trono de Saul; vence uma guerra civil contra os seguidores de Isbosete (filho do Rei deposto); e conquista Jerusalém (aos jebuzeus), para onde translada a Arca da Aliança e constrói um templo a Jeová. À semelhança do que aconteceu com Madrid e com Brasília, David escolheu para capital uma cidade estrategicamente situada a meio do território conquistado (que a bíblia pretende que sejam os reinos do norte e do sul unificados), chamando-lhe «a Cidade de David». Para David, Jerusalém apresentava ainda a vantagem de não pertencer a numa das tribos israelitas, e os jebuzeus (uma facção canânita) pareciam viver então livres de conflitos armados, provavelmente descurando as defesas militares da cidade.
Os escribas da bíblia pretendem ainda que acreditemos que o reino do norte (Israel), ao se encontrar numa situação de vacatura de poder sem um monarca legítimo, enviou uma representação diplomática com a finalidade de pedir a David para ocupar esse trono vago, tornando-se Rei das 12 tribos num reino integral.

A principal importância bíblica atribuída a David foi a fundação da nação de Israel, dando-lhe o carácter político-administrativo de um verdadeiro reino, com um Estado centralizado e as (12) tribos unificadas. (Embora muitos arqueólogos pensem que a sua relevância como monarca e como guerreiro não corresponde minimamente à que a bíblia lhe atribui. As evidências arqueológicas dizem-nos que, no tempo de David, Israel continuava dividido por feudos tribais, cujos líderes nada estavam interessados em obedecer a uma única monarquia. Mesmo tendo transferido a capital de Hebron para Jerusalém, o exército de David – um misto de guerrilheiros e de salteadores - continuou com as mesmas tácticas, perpetrando ataques inesperados e rápidos às cidades vizinhas, limitando-se a pilhá-las e a provocar uma mortandade, para logo empreenderem uma fuga. Não há prova de que David tenha exercido um controlo imperial sobre as cidades que conquistava e as terras que presumia ter anexado.)

O rapaz que um dia foi o campeão do seu povo ao matar o gigante filisteu chamado Golias, tornou-se Rei e governou por 30 anos. Defraudando as expectativas do seu povo devido à importância histórica (acima de tudo lendária) de ter sido o fundador da Casa Real de Israel, David desviou-se consideravelmente das leis (impostas por Moisés) a que estava obrigado pela sua religião, mostrando alguma torpeza de carácter pelo menos no que toca a assuntos de índole sexual – a pedra angular da religião hebraica. Esse Rei não se limitou a cobiçar a esposa de outro homem, tendo abusado do seu poder ao exigir que a bela Bath-seba/ Betsabé (esposa de Urias, o heteu, que estava ausente em campanha militar) fosse levada ao palácio, onde a fornicou. Ela ficou grávida e disso deu conta a David. Este não queria assumir tais responsabilidades (que acarretariam um escândalo lesa-majestade). Por isso, concebeu um plano infame para impingir o filho indesejado ao marido traído. Urias foi então chamado de volta à segurança da capital. Mas este soldado tinha um extraordinário sentido de honra e de solidariedade para com os seus companheiros de armas ainda a sofrerem na frente de batalha, o que o levou a recusar a ir para casa desfrutar dos prazeres familiares que associava aos tempos de paz, ficando junto do servos do palácio, frustrando as intenções do Rei. Não estando com meias medidas, o traiçoeiro David enviou para uma morte certa o seu rival de alcova, ordenando ao seu general Joab que colocasse Urias no sítio mais perigoso da guerra e aí o deixasse desprotegido para morrer. Foi o que aconteceu. Passado um curto período de luto, o Rei apoderou-se da viúva necessitada de consolo e cuidou do filho de ambos.
Consumidos muitos anos de matrimónio, Betsabé ainda conservava o seu poder de sedução e persuasão junto de David, conseguindo convencer o moribundo Rei a escolher Salomão como seu sucessor, apesar de ter outros filhos mais velhos.
Aparentemente, Jeová fechou os olhos à iniquidade/patifaria adúltera do seu mui amado filho, mas o povo não…Vá lá, até foi uma sorte não terem morto Bath-seba à pedrada … Não fosse ela protegida do Rei…
Sempre que foi rasteirado pelas vicissitudes da vida, David deixava-se dominar pelos remorsos e pensava que estava a ser vítima de castigos divinos, chegando até carpir as suas mágoas para a posteridade nos Salmos.
O seu arrependimento não bastou ao Senhor que resolveu castigar David canalizando a sua vingança através do sofrimento de inocentes (como, aliás, é apanágio de Jeová). Assim, o filho do Rei dos judeus enfermou, acabando por perecer ainda criança. A “justiça divina” mal tinha mostrado a sua face tenebrosa no palácio real…
Pouco depois, o filho mais velho de David consome-se de desejo sexual pela sua irmã, perpetrando uma violação incestuosa. Tendo provado do fruto proibido, despreza a irmã caída em desgraça ( poucas esperanças poderia ela acalentar de que a quisesse esposar outro homem , muito menos um do seu estatuto social). Esta encontrou algum consolo sob a protecção de outro irmão que ficou furioso com o sucedido. Esse azedume cresceu até que a desavença familiar culminou numa guerra civil que opôs os dois príncipes irmãos.
Absalão, outro filho do Rei, torna-se demasiado impaciente por herdar o trono do pai e assume a liderança numa revolta que pretende usurpar o poder régio. Foi morto em combate.

No seu leito de morte, David dá instruções a Salomão de como conservar o trono de Israel/Judá, começando pela célere, metódica e inclemente eliminação dos inimigos internos (os mesmos que tinham ouvido de David a promessa de que ele não atentaria contra as suas vidas…). Antes de ser coroado, já Salomão tinha providenciado a morte de todos os potenciais rivais incluídos a lista fornecida pelo seu pai.

Existe uma prova arqueológica da existência de David. Trata-se de uma inscrição (numa fragmentada peça de basalto negro encontrada, no ano de 1993, em Tel-Dan, a norte de Israel) que fala de um Rei de Damasco que derrotou outro Rei da «Casa de David» (um termo dinástico), não acrescentando mais predicados. Essa peça foi datada como pertencente ao séc. IX a.C. .

David é retratado com um pastor que recebeu a graça de ser ungido por deus (ou seja, tornou-se Messias; o corifeu de um plano divino). Os soberanos seus descendentes herdaram o título de Messias abençoados por Jeová. Essa conveniência só foi quebrada com a morte de Josias (derrotado pelo exército egípcio no séc. VII a.C.). A sobrenatural aura de legitimidade que sustentava a propaganda do poder régio perdeu muita da sua credibilidade popular. Foi necessário conceber outro mito mais duradouro e esperançador. Deixaram de ser a geração esperada para esperarem por um Rei-Messias com uma árvore genealógica pura e enraizada na Casa de David, que os livraria da tirania dos estrangeiros opressores, conduzindo-os a uma “Era dourada”. Jesus Cristo foi um dos candidatos a esse título.

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