sexta-feira, janeiro 14, 2011


Crónicas do Brasil neomedieval III


Crónicas do Brasil neomedieval III

Por motivos que não são para aqui chamados, um infeliz dia vi-me prostrado no chão da casa que habito; em posição fetal, tolhido de atrozes dores no abdómen, praticamente incapaz de me movimentar. Contra a minha vontade, alguém foi chamar um farmacêutico, já que a farmácia se encontrava ao virar da esquina. Quando lá chegou, o homem da bata branca apenas relanceou os seus olhos de carneiro mal morto sobre mim, logo concluiu (verbalizando) que eu me tinha entupido com drogas – justo eu que nunca tive a menor atracção por drogas, sejam elas legais ou ilegais! Como é que a besta preconceituosa chegou a tão disparatado (pseudo)diagnostico ? Bem, suponho que lhe bastou ver um brinco na minha orelha... E qual foi o “socorro” que este profissional de “saúde” me prestou? Ajoelhou-se a meu lado; colocou a sua mão esquerda na minha testa, levantou a outra para o teto; e, com a expressão e a voz de crente alucinado, bradou: “ em nome de Jesus, que o mal se afaste!”
O filho-da-puta estava a exorcizar-me!!! Apesar de me custar imenso até falar, logo o interrompi com a seguinte imprecação: “quero que você e Jesus vão tomar [levar] no cu!” E asseverei-lhe que, se eu estivesse em condições físicas normais, o expulsaria dali a pontapés!
A minha rejeição blasfémica atingiu-o como um inesperado gancho de pugilista sob contagem regressiva.
O tipo titubeou de olhos arregalados, e empalideceu ligeiramente. Desmoronou a sua patética encenação de Damien Karras. Até que recuperou bem célere a postura de soldado de Jeová ante um caso perdido. Levantou-se com soberba indignação e saiu. Eu sabia que ele certamente não tinha ido buscar ajuda médica, julgando ter identificado um caso de Síndrome de Gilles de La Tourette, ou o diabo a quatro, muito para além das suas competências. O que de melhor eu poderia esperar dele é que não regressasse com uma turba de zelotes furiosos, dispostos a acabar com a minha raça – em nome do bom deus... Volvidos poucos dias estive perto disso... (entretanto, soube que o tal farmacêutico abandonara a cidade, tendo dado algumas golpadas impunes, incluindo uns cinco meses de renda por pagar...)
O manual básico de sobrevivência em terras de (in)Vera Cruz diz que a inteligência deve manter-se acantoada. (Para o brasileiro médio, “ser inteligente” significa passar num concurso público, ficando a auferir de um emprego seguro e bem pago... E é melhor ficar por aí mesmo!...) Assim, costumo ocultar o facto de que sou ateu – com muito orgulho!
Encontrava-me a trabalhar, em pleno coração do Pantanal, atendendo um turista inglês. O veículo em que seguíamos era dirigido por um motorista profissional que ocasionalmente presta serviços para a empresa ‘a qual eu dou preferência. Puxando conversa fiada, pretendeu evangelizar-me. Eu fui bloqueando com suavidade as suas investidas, procurando nada dizer que lhe soasse a polémico e/ou ofensivo. (Não é fácil!) A minha tolerância para com esse proselitismo imbecil estava mais baixa do que o costume nesse dia. Quis encerrar de vez aquela discussão (era mais um solilóquio de vaníloquo). Acabei por mandar a cautela ‘as urtigas, resolvendo “sair do armário”, declarando-me ateu. Ai, o que eu fui dizer!... O crente virou o bicho! Eu que, até aí, apenas conhecera a sua “pele de cordeiro”, simpático, solícito e até bajulador (geralmente escondendo interesses pecuniários), vi-o perder totalmente o controlo dos seus “demónios” interiores, regurgitando sobre mim o seu fel sectário. A sua agressividade em crescendo era inversamente proporcional ‘a falta de sólidos argumentos filosóficos, científicos e até teo(i)lógicos, apesar de ‘as vezes parecer entrar em transe místico!...

Como é costume nestas ocasiões, fiquei dividido entre soltar uma gargalhada ou ficar assustado... A prudência e o profissionalismo mandaram que eu ficasse sereno. O que então mais me preocupou foi que o cliente no banco de trás mostrava sinais de se sentir incomodado com a altercação despropositada (e de nada adiantaram os meus apelos para que adiássemos aquele bate-papo, quando e onde não estivessem presentes terceiros, sobretudo clientes. )
Também me questionei, em tom de autocrítica, se, quando eu ataco apaixonadamente a religião, me torno assim tão cabrião...
Em retrospectiva, estou convencido que, se ele tivesse naquele momento uma arma ‘a mão, a esta hora eu poderia estar a alimentar os vermes da terra.
Já estudei e vi suficientes horrores perpetrados em nome da religião e de deuses... humm, gostaria que alguém me desse exemplos (basta um) de alguma guerra, batalha ou outra forma de violência letal, em que as partes beligerantes estivessem dispostas a ir até ‘as últimas conseqüências em nome de correntes irreconciliáveis do ateísmo ...

Disse-me que os portugas tinham má energia, pois eu era da raça dos que tinham ido para o Brasil apenas para explorar e matar os índios; que os portugas são estúpidos e merecem o escárnio dos brazucas; que quem não tem deus no coração, não tem moral; etc... Enfim, as aleivosias xenófobas a que já me habituei, imunizando-me. (Em todos os países em que vivi houve pessoas que quiseram me sujeitar ao anátema de estrangeiro. “Vai para a tua terra!”, é algo que escuto de forma recorrente desde criança. Ah, como eu detesto nacionalismos! Tanto quanto as religiões.)
Sem que ele percebesse as amargas ironias desses insultos, é até curioso constatar que ele tem um pai português. Além disso, a sua fisionomia denuncia claramente a sua descendência dalguma(s) etnia(s) ameríndia(s). Informou-me que a sua avó era índia. Mas ele considera uma ofensa grave quando o apodam de índio, demonstrando um profundo desprezo pelos povos tribais, reflexo do perigoso preconceito que domina a sociedade brasileira – com muitas e honrosas excepções, está claro.
Disso lhe dei conta. Ele retorquiu que tinha puxado ‘a mãe, de origem italiana. Então perguntei-lhe se queria que eu lhe falasse sobre algumas atrocidades cometidas pelos originários de Itália? Talvez eu devesse começar pelos romanos, ou bastaria o sangue derramado no “Novo Mundo”? Com um gesto de quem quer afastar uma mosca, disse-me que nada disso tinha importância, pois o que conta é que ele é brasileiro. É como se, a partir do hipotético “grito do Ipiranga” - “independência ou morte!”-, oficializada a emancipação do reino de Portugal, os brasileiros tenham automaticamente se tornado uma nova etnia, sem quaisquer laços (genéticos e culturais) com os lusos malfeitores (que continuam a servir de bodes expiatórios para uma miríade de males que afligem o Brasil...). Desde então, como é óbvio para todo o mundo, os brasileiros têm-se dedicado com sacrossanto esmero ‘a preservação da “sua” natureza silvestre, assim como dos respectivos povos tribais; sempre apostando forte no seu desenvolvimento intelectual e moral... Pois, pois...
Será assim tão difícil perceber que só existe uma raça humana (e provou-se recentemente que até temos genes de Homo neanderthalensis – salvo as populações que nunca saíram de África), e que nenhuma cultura ou linhagem está isente de barbárie que a todos nos deveria envergonhar?!Eu não tenho que assumir essa pesada herança, a não ser no sentido de pugnar para que não se repita o que mais atenta contra os meus ideais ecologistas e humanitários.
Socialmente, o que o Brasil tem de mais interessante é a extraordinariamente diversificada miscigenação étnico-cultural (que as igrejas pretendem uniformizar...). Se eu formulo críticas, é porque me importo e luto para ver melhorias.

Dissipada a cortina de fumo dos seus argumentos espúrios e hipócritas, revelou-se o cerne da sua animosidade intolerante: eu não partilhava das suas crenças religiosas.

Mas só no dia seguinte pudemos ter esta conversa com o mínimo de cordialidade, quando, em nome do emprego e da almejada estabilidade económica, ele teve a hombridade e a decência de me pedir desculpas pelas ofensas gratuitas; não tanto pelo seu teor, mas pela hostilidade desmedida com que as proferiu.

Toda a vida eu procurei ter uma postura ética, baseada em sólidos valores morais, e seguindo o caminho do bem. (Por piada, usei a terminologia maniqueísta dos crentes.) Um número considerável de pessoas idóneas pode atestar isso. Mas, na mente da esmagadora maioria dos crentes brasileiros (incluo nessa designação qualquer um que viva nas trevas intelectuais da superstição religiosa), isso não importa porque “ se eu não trabalho para deus, trabalho para a oposição [Lúcifer]!”... foram exactamente estas as suas palavras.

Aceitei as suas desculpas, até porque nem tinha ficado ofendido, tamanho fora o absurdo. A nossa relação superficial (meramente profissional e ocasional) ficaria isenta de ressentimentos. Pelo menos da minha parte. Não valia a pena tentar fazer que este analfabeto funcional e fundamentalista compreendesse o meu ponto de vista ateu. Para o ajudar, limitei-me a pedir-lhe que, se queria paz na consciência, deixasse de ver demónios por todo o lado. A maioria dos ecoturistas que ele transporta são ateus ou, pelo menos, agnósticos. Ele faz tudo ao seu alcance para os agradar (principalmente porque espera ganhar gorjetas). Se ele continuar a pensar que os ateus são servos de Satanás ou demónios disfarçados, como poderá dormir tranquilamente com as contas pagas por tais criaturas alvo do seu temor e ódio?! Acho que ele ficou a pensar no assunto, enquanto botava água na fervura da acrimónia...


Para terem uma idéia de quão carentes de ciência e outros estímulos intelectuais relevantes está a maioria dos habitantes do Brasil profundo por onde perambulo (cuja natureza silvestre eu amo tanto ou mais que qualquer nativo), aqui vão mais um par exemplos anedóticos, porém corriqueiros.
Numa cidade do interior, ouvindo de passagem na rua. Um casal jovem caminhava com um filho de uns 6 anos de idade. O garoto perguntou: “ mãe, quem foram os dinossauros?” R: “está calado! Não fales nesses, [por]que foram os que mataram Jesus Cristo...”
Há pouco tempo ajudei uma professora de história (em processo de tirar um mestrado) a preparar as suas aulas. A sua ignorância está para além de grave, atingindo a dimensão do surrealismo. Se o ministério da educação a obriga a falar da evolução das espécies, ela sempre contrapõe cavilosamente com propaganda creacionista. Como se isso fosse pouco, esta “educadora” recusa-se a acreditar que a Terra é redonda e que gira ‘a volta do sol, porque a bíblia diz o contrário!...

Sem comentários: